Startup paulista desenvolveu um dispositivo portátil para combater uma das principais características das crises de epilepsia: sua imprevisibilidade. Um aparelho vestível não invasivo, cujo objetivo é detectar e avisar os próprios afetados ou pessoas próximas de possíveis crises epilépticas com até 25 minutos de antecedência, começará a ser testado ainda este ano no Hospital de Clínicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). A epilepsia é uma doença neurológica ainda sem cura que afeta cerca de 50 milhões de pessoas no mundo. Estima-se que o número de brasileiros com essa enfermidade ultrapasse 2 milhões.
A inovação é fruto do esforço de pesquisa da Epistemic, empresa criada em 2015 e instalada no Centro de Inovação, Empreendedorismo e Tecnologia (Cietec) da Universidade de São Paulo (USP). Batizado de Aurora, o protótipo encontra-se em sua quarta versão. Lembra um fone de ouvido ou uma tiara de cabelo, contendo em seu interior um miniaparelho de eletroencefalograma (EEG), que registra a atividade elétrica do cérebro. O EEG, por sua vez, está conectado a um software que processa as informações das ondas cerebrais e faz soar um alarme para o smartphone do portador ou de alguém próximo caso o algoritmo detecte que uma crise se aproxima. O desenvolvimento do Aurora é apoiado pelo programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe), da FAPESP.
“É igual aos aparelhos tradicionais de eletroencefalograma, só que miniaturizado. Cabe na palma da mão”, diz a engenheira eletricista Paula Gomez, que fundou a empresa em 2015 com a mãe, a física teórica Hilda Cerdeira, estudiosa da teoria do caos e sistemas não lineares, e os engenheiros Conrado Leite de Vitor e Giuliano Leite de Vitor. A proposta é que os pacientes usem o dispositivo continuamente e ao receber o aviso possam se proteger, tomando a medicação prescrita pelo médico ou dirigindo-se a um lugar seguro. Essa possibilidade permitiria uma melhor qualidade de vida, com menos limitações e maior autonomia, segundo os desenvolvedores da tecnologia.
Um grande desafio para os estudiosos de epilepsia é encontrar um padrão na imprevisível atividade elétrica cerebral ou outro sinal que indique que uma pessoa terá uma crise em alguns minutos. Esses eventos podem se manifestar de diferentes maneiras, entre elas convulsões com movimentos motores rítmicos e repetitivos e desmaios breves com lapso de memória.
É esse padrão que a física Hilda Cerdeira diz ter identificado depois de se debruçar sobre bases de dados internacionais com informações de pessoas com epilepsia que ficaram internadas para serem submetidas a cirurgia. Em suas investigações, a pesquisadora afirma ter detectado a ocorrência de um padrão cerebral específico a partir de 25 minutos antes da crise.
“Muita gente tenta encontrar um padrão”, afirma Cerdeira. Argentina naturalizada brasileira, ela já estava aposentada pela Unicamp e pelo Centro Internacional de Física Teórica Abdus Salam, em Trieste, na Itália, quando iniciou as pesquisas com os sinais cerebrais da epilepsia, empregando uma metodologia desenvolvida anteriormente por ela para decodificar sinais caóticos em sistemas não lineares. O interesse pelo assunto surgiu ao proferir uma palestra no Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, em 2008, e tomar conhecimento do padrão desordenado dos sinais dos encefalogramas.
Prova de fogo
A pesquisa realizada na Epistemic, afirma Gomez, está em linha com a que é feita pelos grupos mais avançados no mundo. “Desconheço a existência de um dispositivo como o nosso no mercado”, ressalta. A prova de fogo da startup serão os testes programados para ocorrer na Unicamp. Eles serão executados em parceria com o Instituto Brasileiro de Neurociências e Neurotecnologia (Brainn), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) apoiados pela FAPESP. Durante o estudo, os pesquisadores poderão conferir em voluntários se o padrão encontrado por Cerdeira indica, de fato, a iminência de uma crise epiléptica. Os participantes serão monitorados pelo Aurora durante cerca de 18 meses.
Gomez explica que, em geral, pessoas que vão se submeter a uma cirurgia para o controle da doença ficam internadas para registro de vídeo acoplado ao EEG para localizar a área cerebral responsável pela origem das crises. Indicado para o universo dos 30% de pacientes cuja epilepsia é refratária à terapia com drogas antiepilépticas, o tratamento cirúrgico pode envolver tanto a remoção da parte do tecido cerebral responsável pela origem das crises como a interrupção da comunicação entre as estruturas cerebrais envolvidas nelas. Antes da cirurgia, os pacientes são monitorados 24 horas por dia por EEG e têm sua medicação para controle das crises reduzida gradativamente, o que aumenta o risco de ocorrência de eventos. Os dados de aproximadamente 200 registros de crises epilépticas focais e generalizadas em 50 pacientes foram utilizados por Cerdeira para identificar um padrão da chamada fase pré-ictal – termo médico que pode ser traduzido como pré-crise.
“Agora, durante os testes clínicos do nosso dispositivo, que foram adiados por causa da pandemia de Covid-19, vamos ver a diferença na prática, por duas razões. Primeiro, porque nenhum remédio será retirado dos pacientes. E, também, porque os voluntários estarão se movimentando, desempenhando suas atividades normais, e não deitados em uma cama hospitalar”, comenta a engenheira eletricista. Com isso, o teste vai se aproximar do que seriam as condições do dia a dia dos possíveis usuários do dispositivo.
Além do algoritmo de predição de crises, a Epistemic também desenvolveu a eletrônica e a mecânica do sistema. Entre as inovações tecnológicas empregadas figuram eletrodos secos e uma placa flexível que abriga o sistema de processamento – maleável, ela se molda à cabeça dos pacientes. A novidade dos eletrodos é que, ao contrário dos empregados em aparelhos convencionais de EEG, os secos não precisam de uma pasta condutora para funcionar – esse material é colocado nos pontos da cabeça onde eles são aplicados para garantir seu bom funcionamento. O Aurora é dotado de quatro eletrodos, que ficam em contato com o couro cabeludo. Dois deles captam os sinais elétricos cerebrais, um de cada lado da haste, e os outros dois verificam se os demais estão bem posicionados e funcionando corretamente.
O neurologista Carlos Eduardo Soares Silvado, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), avalia que o grande desafio do Aurora será detectar as crises com 25 minutos de antecedência. “As crises começam e rapidamente se instalam, muitas vezes em questão de segundos”, sustenta. “Se o Aurora funcionar, será fantástico, terá grande serventia para os portadores de epilepsia.” Ele ressalta, contudo, que há casos em que o próprio eletroencefalograma hospitalar não consegue achar o foco das crises, dependendo de sua localização no córtex cerebral. “Talvez seja preciso colocar mais eletrodos no dispositivo ou sofisticar os algoritmos. É uma pesquisa promissora.”
Pesquisador responsável pelo Brainn e professor da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, o neurologista Fernando Cendes considera “muito otimismo” achar que o dispositivo da Epistemic será capaz de detectar uma crise epiléptica com quase meia hora de antecedência. Ele avalia, entretanto, que o desenvolvimento poderá ter muitas aplicações, já que é uma forma de monitorar a atividade elétrica cerebral continuamente de forma não invasiva. “Mesmo que detecte uma crise cinco segundos antes, já vai ser importante. É a partir de avanços como esse que a ciência caminha.”
Segundo Cendes, o estudo programado para a Unicamp, da qual seu grupo fará parte, é ainda uma fase inicial. “Se essa primeira prova de conceito funcionar deverá ser feito um ensaio com um número maior de pessoas.” O pesquisador afirma que é difícil prever quando o dispositivo poderá estar acessível aos pacientes. “Como tudo em ciência, cada etapa depende de se obter as comprovações.” Para chegar ao mercado, além de se mostrar viável em testes clínicos, o dispositivo precisará ser aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
O projeto já rendeu algum reconhecimento nacional e internacional à Epistemic. No ano passado, a startup foi selecionada para participar do programa de aceleração Creative Startups, da Samsung, que oferece até R$ 200 mil para os desenvolvedores que investiram no produto. Em 2018, Gomez foi agraciada com o Cartier Women’s Initiative Awards, que celebra iniciativas de empreendedoras. O prêmio foi criado pela marca de joias Cartier, em parceria com a escola de negócios francesa Insead e a consultoria norte-americana McKinsey.
Com os recursos da Samsung, a startup criou um aplicativo, o Epistemic App, que funciona como um diário, onde o paciente pode registrar dados referentes a alimentação, sono, atividade física, entre outros. O dispositivo foi lançado no ano passado, juntamente com a plataforma Epistemic Web, onde as informações anotadas pelo paciente no aplicativo são transformadas em gráficos e relatórios e compartilhadas com os médicos. “O Epistemic App serve tanto para registrar dados relacionados à crise em si quanto para marcar possíveis gatilhos”, explica Gomez. Gratuito e disponível na Google Play, o aplicativo conta com 1,1 mil usuários ativos e já sofreu cerca de 4,5 mil downloads.
Corrida global
Pesquisas com a finalidade de ajudar pessoas com epilepsia a conviver com a doença avançaram nos últimos anos. Diversas inovações, com diferentes propósitos, já chegaram ao mercado, entre elas aparelhos que detectam o momento em que uma crise está ocorrendo e emitem alertas. Nessas horas, o cérebro apresenta alterações mais facilmente detectáveis. “Quando acontece uma crise, há uma mudança abrupta na atividade elétrica cerebral”, conta Cendes. “De uma hora para outra há um disparo anormal, sustentado, de um grupo grande de neurônios. Essa atividade fica mais rítmica, mais forte e com um disparo diferente do habitual.”
O neurologista da Unicamp explica que as manifestações clínicas de uma crise dependem de onde no cérebro ela ocorre e se as descargas anormais são restritas a um local (crises focais) ou generalizadas. “Essas manifestações são muito variadas, podendo, por exemplo, ocorrer com aumento de movimentos – como abalos musculares ou movimentos automáticos – ou com parada comportamental em que a pessoa fica com o olhar perdido e sem reação por alguns segundos. Portanto, muitas vezes o paciente não percebe – nem quem está ao redor – a ocorrência de um ataque.” Dessa forma, a simples anotação pela pessoa de seus sintomas não traduz com precisão a frequência e a duração das crises.
Um artigo de revisão publicado em 2020 na revista científica Acta Neurologica Belgica fez uma comparação entre 16 diferentes sistemas vestíveis focados em detectar crises epilépticas. Entre os dispositivos não invasivos, a maioria identifica alterações motoras comuns durante a crise. A detecção ocorre graças a instrumentos chamados actímetros que integram esses dispositivos. Disseminados em smartphones e relógios, os actímetros são capazes de apontar se o usuário está andando, correndo ou em repouso. Muitos também têm sensores de temperatura da pele e de batimentos cardíacos.
Aprovada pela FDA, Food and Drug Administration, agência norte-americana que regula alimentos e medicamentos, em 2018, a pulseira Embrace, da companhia ítalo-americana Empatica, tem um biossensor de atividade que detecta crises convulsivas – que são crises com abalos musculares – e manda um sinal de alerta, via bluetooth, para o celular de uma pessoa próxima ao paciente. A empresa americana SmartMonitor criou o relógio inteligente Inspyre, que detecta abalos do movimento característicos de convulsões e avisa familiares. Porém esses aparelhos não detectam as crises epilépticas que não apresentam abalos musculares, e que são, em geral, as mais frequentes.
Outra categoria é a dos aparelhos invasivos – utilizados em casos mais graves, nos quais a condição é refratária a medicamentos e as crises epilépticas são fortes e frequentes – com eletrodos implantados no interior ou na superfície do cérebro dos pacientes em uma placa de silicone. “Esses dispositivos são geralmente divididos em duas partes: os eletrodos e um sistema formado por bateria, fios e chip processador. Tudo é implantado no corpo, como nos aparelhos marcapasso, que controlam o ritmo do coração”, diz Cendes. “Parte do aparelho fica no cérebro e parte sob o couro cabeludo ou parte no cérebro com fios ligados a um sistema implantado sob o músculo peitoral.”
Em Melbourne, na Austrália, o Instituto Bionics trabalha em um aparelho implantável para registro das crises. Assim que detecta alterações nos sinais elétricos cerebrais, o dispositivo libera a medicação anticrise ao paciente. Já a startup californiana NeuroPace desenvolveu um aparelho de eletroestimulação, batizado de RNS, que é implantado no cérebro de quem tem epilepsia refratária a medicamentos. O sistema envia breves pulsos de estimulação elétrica para o cérebro, conforme necessário e segundo o programado pelo médico. Com sede na Irlanda, a Medtronic também oferece uma solução de neuroestimulação, com aparelhos implantáveis, tanto para pacientes com epilepsia refratária a remédios como para portadores de Parkinson.
Para Cendes, dispositivos vestíveis apresentam algumas vantagens em relação aos invasivos. “Tudo o que é não invasivo é muito mais prático”, pondera. “O paciente não depende de cirurgia e, por isso, não há riscos de infecção ou de outras complicações. Além disso, o custo é muito mais reduzido.”
Projeto
Dispositivo médico de previsão de crises epilépticas (no 18/19877-3); Modalidade Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisadora responsável Paula Renata Cerdeira Gomez (Epistemic); Investimento R$ 720.943,27.
Artigo científico
VERDRU, J. & PAESSCHEN, W. V. Wearable seizure detection devices in refractory epilepsy. Acta Neurologica Belgica. v. 120, n. 6, p. 1271-81. 6 jul. 2020.
Covid-19: Robô Aurora inicia testes de usabilidade em hospital de PE
Discussion about this post