Na semana do Natal, um foguete Ariane 5 deve deixar a base de lançamentos de Kourou, na Guiana Francesa, carregando o maior, mais caro e mais potente instrumento lançado aos céus para vasculhar o Universo, o Telescópio Espacial James Webb (JWST), considerado por muitos o sucessor do telescópio espacial Hubble (ver quadro comparativo dos dois telescópios). O observatório ficará em órbita solar, como se fosse mais um planeta de nosso sistema, a 1,5 milhão de quilômetros de distância da Terra. Sua vida útil prevista é de cinco a 10 anos e seu custo, até o lançamento, alcançou cerca de US$ 10 bilhões, três vezes mais do que o valor inicial do Hubble, bancados quase integralmente pela agência espacial norte-americana (Nasa).
O objetivo primordial do James Webb é, em poucas palavras, observar o Universo nascente e longínquo, as primeiras estrelas, galáxias, buracos negros e sistemas planetários formados logo após o Big Bang, a explosão inicial que teria ocorrido 13,7 bilhões de anos atrás e originado o Cosmo. Se não houver algum imprevisto de última hora, no dia 24 de dezembro, o James Webb começa a deixar para trás um passado conturbado na Terra e inicia sua missão cósmica em prol da ciência. Foram cerca de 30 anos pontuados por modificações no desenho e na instrumentação, uma proposta (refutada) de cancelamento do projeto, estouros de orçamento e atrasos em seu cronograma. Na década passada, seu lançamento chegou a ser previsto em pelo menos duas ocasiões e apenas neste ano sua data de subida ao espaço foi adiada três vezes.
Financiado majoritariamente pela Nasa, com pequena participação de seus congêneres da Europa (ESA) e do Canadá (CSA), o James Webb começou a ser pensado em 1989, um ano antes do lançamento do Hubble. Em 1996, sua primeira versão era chamada de Next Generation Space Telescope (NGST) e estava orçada em cerca de meio bilhão de dólares. Em 2002, o telescópio passou a ser denominado James Webb, nome do segundo administrador da Nasa que esteve à frente da agência durante o projeto Apollo, que levou o homem à Lua. Recentemente, um grupo de astrônomos questionou a escolha do nome do telescópio sob a alegação de que James Webb perseguiu homossexuais no serviço público norte-americano nos anos 1950 e 1960. A Nasa, no entanto, rechaçou as críticas e manteve a decisão.
Desde meados de outubro deste ano, o telescópio está na base de Kourou, distante 240 quilômetros da fronteira brasileira, um indicativo de que o empreendimento tem, finalmente, grandes chances de decolar. “Checamos tudo novamente e posso reportar que o James Webb está em perfeitas condições”, disse no início de novembro, ao site da rede britânica BBC, a engenheira Begoña Vila, da Nasa, responsável pelos sistemas de instrumentação do telescópio. Diferentemente do Hubble, cujas observações ocorrem basicamente em comprimentos de onda da luz visível e também do ultravioleta, o James Webb é um equipamento concebido para operar essencialmente em frequências do infravermelho, invisíveis ao olho humano.
A escolha preferencial por esse tipo de radiação tem tudo a ver com os objetivos do telescópio, cujo espelho principal, de 6,5 metros de diâmetro, é quase três vezes maior que o do Hubble e capta seis vezes mais luz. “Os objetos muito antigos e distantes, que se formaram poucas centenas de milhões de anos depois do Big Bang, só podem ser observados no infravermelho, e não na luz visível”, explica o astrofísico holandês Roderik Overzier, do Observatório Nacional, do Rio de Janeiro, que coordena um dos quase 300 projetos que vai usar o James Webb. O grupo de Overzier estudará a evolução da mais antiga radiogaláxia conhecida, a TGSS J1530+1049, de 12,5 bilhões de anos, e outra um pouco mais nova, de 10 bilhões de anos.
“Essas galáxias são ativas e têm um buraco negro em seu centro”, diz a astrofísica Catarina Aydar, aluna de doutorado do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP) que faz parte da equipe do astrofísico do ON. O James Webb deverá ser capaz de ver objetos entre 10 e 100 vezes menos luminosos (para um observador situado na Terra) do que os flagrados pelo Hubble. Em sua resolução máxima, poderia obter uma imagem nítida de um corpo celeste do tamanho de uma bola de futebol a uma distância de 550 quilômetros.
O James Webb foi projetado para ser capaz de gerar dados sobre objetos formados entre 100 e 200 milhões de anos depois do Big Bang, uma fase da história cósmica inacessível aos instrumentos atuais de observação. “Para mim, o mais correto é considerar o James Webb o sucessor do telescópio Spitzer, e não do Hubble”, comenta o astrofísico Rogemar Riffel, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), do Rio Grande do Sul, que coordena um projeto que vai usar os instrumentos do novo telescópio da Nasa para observar ventos de hidrogênio molecular (H2) no entorno de buracos negros em galáxias relativamente próximas. Ativo entre 2003 e 2020, o Spitzer, outra iniciativa da Nasa, também operava no infravermelho, mas sua capacidade de revelar detalhes de objetos distantes era cerca de mil vezes menor do que a do James Webb.
O novo telescópio infravermelho é um instrumento com características singulares. A começar por seu tamanho, de 22 metros (m) de comprimento por 12 m de largura, semelhante às medidas de uma quadra de tênis (o Hubble tem dimensões da ordem das de um ônibus). Nunca algo tão grande foi mandado ao espaço. Totalmente aberto, o observatório não cabe em nenhum foguete lançador de satélite. Por isso, viajará na ponta do Ariane 5 todo encolhido, com seus principais componentes dobrados. Após o lançamento, as partes centrais do telescópio — o escudo solar (seu maior componente), a antena e o espelho principal — começam a se abrir e a se encaixar umas nas outras em um processo automatizado que lembra a montagem de um origami.
Seu espelho principal, por exemplo, é composto por 18 segmentos menores, de formato hexagonal e feitos de berílio, um material leve. A bordo do Ariane 5, ele ganha o espaço dobrado em três pedaços, que irão se encaixar para formar o espelho principal: uma parte central e maior, composta de 12 segmentos, e outras duas menores, cada uma delas com três segmentos. “Há 344 pontos críticos de falha no telescópio, 80% deles associados ao seu processo de desdobramento e montagem”, disse Mike Menzel, engenheiro-chefe da missão Webb da Nasa, em coletiva de imprensa no início de novembro. Se algum desses pontos apresentar mau funcionamento e o problema não puder ser contornado, o sucesso da empreitada pode ficar comprometido.
Um mês após seu lançamento, o James Webb deverá estar totalmente montado, resfriado pela ação de seu escudo solar e por sistemas de refrigeração (seus instrumentos trabalham a temperaturas baixíssimas, entre -266 e -223 graus Celsius) e ter atingido seu ponto na órbita solar. Nos cinco meses seguintes, ele passará por um processo de checagem e calibragem de seus componentes. O telescópio dispõe de quatro instrumentos de observação, dotados de câmeras, espectrógrafos e coronógrafos, que operam em diferentes comprimentos de ondas, quase sempre no infravermelho. As câmeras geram imagens de objetos e os espectrógrafos captam a luz e a quebram em diferentes cores (frequências), um processo que permite analisar a composição química do corpo celeste de onde vem a radiação. Os coronógrafos bloqueiam a luz das estrelas e permitem divisar objetos que seriam ofuscados por esse brilho, como exoplanetas em torno de seus sóis.
Aproximadamente seis meses depois de ter sido lançado, por volta do segundo semestre de 2022, o James Webb deverá iniciar seu primeiro ciclo de observações científicas. Essa fase se estenderá por um ano e deverá abranger 6 mil horas. Como é praxe em grandes telescópios internacionais, cerca de 80% do tempo de observação é aberto para propostas de grupos de astrônomos de todo o mundo. O restante é reservado para projetos de interesse da direção do James Webb e dos parceiros que nele investiram diretamente. Quase 1.200 propostas de uso dos instrumentos do telescópio foram submetidas por grupos de 44 países para o primeiro ciclo de observação, das quais 286 foram aprovadas. Dois projetos têm como principais investigadores astrônomos de instituições brasileiras: o de Roderik Overzier, do ON, e o de Rogemar Riffel, da UFSM. Outros nove projetos capitaneados por grupos do exterior contam com a participação de pelo menos um pesquisador de universidades ou centros nacionais. O próprio Overzier faz parte de três dessas iniciativas coordenadas por pesquisadores de fora e Riffel de mais uma.
A astrofísica Isabel Aleman, da Universidade Federal de Itajubá (Unifei), de Minas Gerais, colabora em dois projetos internacionais que ganharam tempo de observação no James Webb. “Em ambas as propostas, estudaremos nebulosas planetárias, que são nuvens de material ejetado por estrelas velhas, de uma a oito massas solares, no final de sua vida”, comenta Aleman. A astrofísica Marília Gabriela Cardoso, aluna de doutorado do IAG-USP, é membro de uma equipe que vai observar estrelas anãs M, que têm massas menores ou iguais à metade do Sol, em um aglomerado globular.
“Queremos compreender melhor os cenários de formação de populações estelares múltiplas, caracterizadas por apresentarem composições químicas distintas entre si”, explica Cardoso.
Outros três pós-doutorandos ligados ao ON participam de dois projetos internacionais. Ana Carolina de Souza Feliciano integra uma equipe que pretende estudar a composição dos chamados objetos transnetunianos, corpos celestes gelados situados além de Netuno. Paola Dimauro e Yolanda Teja colaboram com um grupo que tentará observar uma candidata à estrela solitária com cerca de 13 bilhões de anos. A julgar pela quantidade e diversidade de propostas aprovadas, não faltará serviço para o James Webb caso tudo dê certo com a missão.
Fonte: Fapesp
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