Quando invade o território de um vizinho, o macho da rãzinha-das-corredeiras (Crossodactylus schmidti) – que tem 3 centímetros (cm) de comprimento e vive na porção sul da Mata Atlântica – começa as provocações pelo canto. De início, o dono daquele pedaço do riacho responde à altura. Mas, quando o invasor mostra os dedos das patas de trás, o residente eleva o tom, gesticula de volta e canta por mais tempo, comportamento que lhe valeu o apelido de rã italiana.
“O gesto com os dedos parece indicar a real intenção de invadir”, explica o biólogo Vinicius Caldart, que estudou a rã durante seu estágio de pós-doutorado na Universidade de São Paulo (USP), com financiamento da FAPESP, e descreveu os achados em artigo publicado em outubro na revista científica Journal of Animal Ecology. Os animais não devem ter consciência da intenção expressa pelo gesto e por suas consequências, mas, mesmo assim, a cena lembra um bate-boca em um bar ou no trânsito. Em seres humanos, mostrar o dedo médio tem um significado obsceno e ofensivo em qualquer circunstância. “Na rã não é assim, pois o gesto dos dedos feito pelo invasor só surte efeito se já estiver cantando”, ressalta o pesquisador, atualmente na Universidade Estadual de Ponta Grossa, no Paraná.
Para testar a reação das rãs residentes ele usou um robô realista, capaz de emitir sons e levantar os dedos das patas de trás de forma programada. O protótipo foi posicionado diante de 38 machos, cada um defensor de seu trecho de riacho, a uma distância de 70 cm – perto o suficiente para ser visto como uma ameaça. “Quando o robô mostrou os dedos sem o canto, o dono do território ignorou o gesto”, ressalta Caldart. Seria um tipo de comunicação rara, em que a mensagem isolada não faz sentido.
“É como se um gesto arbitrário, como mostrar o dedo mindinho, só se tornasse uma afronta depois de começada a briga”, compara o biólogo Glauco Machado, do Instituto de Biociências da USP, supervisor de Caldart e um dos autores do artigo. Ele cita exemplos de comunicação por canais diferentes, como o lobo que rosna, mostra os dentes e eriça os pelos ao mesmo tempo. Mas geralmente, segundo ele, cada sinal isolado carrega uma mensagem própria e clara.
Antes de se atracarem, as rãs normalmente trocam agressões sonoras e visuais por até 30 minutos – além dos dedos, elas podem levantar o braço, se mover de um lado a outro ou tremer o corpo para cima e para baixo, como se fizessem pequenas flexões.
Para os pesquisadores, esse impasse é uma forma de avaliar o potencial do oponente – o canto mais grave, por exemplo, reflete o tamanho do corpo, e os movimentos são sinal de sua força física. “É possível que esse comportamento tenha surgido como uma forma de evitar brigas que não podem ser vencidas”, explica Machado. Assim, o oponente mais fraco poderia desistir, evitando ferimentos, gastos energéticos desnecessários, além de exposição a predadores.
O gesto dos dedos teria surgido para possibilitar a comunicação em meio ao barulho da cachoeira – ou, usando a analogia entre seres humanos, a música alta do bar – que pode abafar o canto. “Essa pode ter sido uma função inicial que depois foi perdida, e o gesto adquiriu outro sentido”, Machado levanta como hipótese.
Algo semelhante pode ter acontecido com as primeiras aves, que não voavam, mas usavam as asas curtas para manter a tração no solo e escalar terrenos íngremes. Só depois as asas teriam adquirido função de voo, de acordo com uma hipótese sobre a evolução das aves.
O biólogo Célio Haddad, do campus de Rio Claro da Universidade Estadual Paulista (Unesp), que não participou do estudo, concorda que pode ter ocorrido uma mudança de finalidade do gesto, mas favorece uma origem mais simples. “Parentes da rã C. schmidti que têm hábito noturno ficam muito tempo parados e mexem os dedos para se ajeitar ou se esticar”, conta o especialista em anfíbios. Segundo ele, esse gesto, pouco visível à noite, poderia ter sido apropriado como uma forma de comunicação em espécies diurnas como C. schmidti.
“É comum que gestos mudem de função em rãs”, conta Haddad. Ele menciona outra espécie de pequenos sapos da Mata Atlântica, do gênero Brachycephalus, que coaxa e passa a mão amarela por cima do olho preto, criando um contraste que chama a atenção da fêmea. “Essas rãs fazem o mesmo movimento para limpar os olhos quando estão sujos de terra”, conta o pesquisador.
Para os autores do estudo, esse trabalho contribui para a compreensão do mundo da comunicação animal. Eles ressaltam que o ser humano, como primata, tem acesso limitado a boa parte das estratégias de comunicação de outras espécies, que transcendem sua capacidade de visão e audição. O uso de um robô é uma forma de manipular o comportamento de um animal na intenção de desvendá-lo.
Machado remete ao filme norte-americano de ficção científica A chegada, de 2016, em que cientistas usam técnicas simples para investigar a comunicação de alienígenas com mentalidade diferente da humana. “Na Terra temos milhões de animais com linguagens desconhecidas”, afirma o biólogo, que diz ter se sentido como os pesquisadores do filme ao fazer o estudo.
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