Não é sempre que acontece. No final de janeiro, com apenas dois dias de diferença, um grupo de pesquisadores liderado pelos biólogos Fausto Barbo e Felipe Grazziotin, do Instituto Butantan, publicou a descrição de duas novas espécies de jararaca. Uma delas, com nome científico Bothrops jabrensis, só é encontrada em uma área muito pequena no interior da Paraíba. A outra, chamada Bothrops germanoi, existe apenas em uma ilha, menor ainda, do litoral de São Paulo. Por viverem em locais muito restritos e sujeitos ao impacto da ação humana, ambas correm sério risco de desaparecer. Nos artigos em que as apresentam, os pesquisadores recomendam que sejam classificadas como criticamente ameaçadas de extinção na próxima lista elaborada pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). “São espécies que acabamos de conhecer e estão prestes a sumir”, conta Grazziotin.
A descrição de B. jabrensis e B. germanoi eleva para 48 o total de espécies de jararacas reconhecidas pela ciência. Essas cobras são amplamente distribuídas pelo Brasil e consideradas as grandes responsáveis pelas picadas de serpentes no país. Segundo algumas estimativas, de 80% a 90% das picadas são causadas por esse grupo de víboras. Exclusivas das Américas, todas as espécies popularmente chamadas de jararaca integram o gênero Bothrops, composição das palavras gregas bóthros e óps (respectivamente, fossa e olho) que faz alusão à fosseta loreal, órgão sensível ao calor. Situado entre o olho e a narina em cada lado da cabeça de jararacas, cascavéis e surucucus, esse orifício permite a essas serpentes detectar variações muito sutis de temperatura e localizar presas ou detectar a aproximação de predadores.
A primeira das duas novas espécies foi identificada em 2016, na região central da Paraíba, em uma mistura de acaso e sorte. Em março daquele ano, o ecólogo Marcelo Kokubum, professor da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), fez uma série de excursões de campo com dois estudantes de mestrado e três de graduação ao pico do Jabre, no município de Matureia, distante cerca de 50 quilômetros (km) do campus da universidade na cidade de Patos. Com altitude máxima de 1.197 metros, o pico do Jabre é o ponto mais elevado da Paraíba e tem características muito peculiares. Próximo ao topo, onde o clima é mais úmido e fresco, cresce uma vegetação florestal de montanha conhecida como brejo de altitude, que ocupa uma área muito pequena, de apenas 5,5 quilômetros quadrados (km2). A flora e a fauna que vivem ali são muito mais semelhantes às da Mata Atlântica, que ocorre a mais de 200 km a leste, no litoral, do que as da Caatinga, predominante em toda a região.
Em uma manhã de março daquele ano, Kokubum e equipe caminhavam pelas trilhas do Jabre à procura de lagartos e anfíbios quando as biólogas Claudenice de Arruda e Ingrid Nunes Henriques avistaram uma cobra em um arbusto, próximo ao solo, e, algumas horas mais tarde, outro exemplar em um arbusto mais alto. Pareciam ser jararacas, mas a coloração, em tons de marrom e cinza, era diferente da cor mais avermelhada característica da espécie B. erythromelas, a jararaca-da-seca, encontrada na Caatinga. No mesmo dia, o grupo fotografou a serpente e enviou as imagens ao analista ambiental Marco Antonio de Freitas, do ICMBio, que é colaborador dos pesquisadores do Butantan e as fez chegar à equipe de São Paulo. Como parecia ser uma espécie nova, os pesquisadores da UFCG retornaram à região outras vezes e conseguiram encontrar um terceiro exemplar, dois estão guardados na UFCG e um foi enviado ao Butantan. “Todos eles foram encontrados enrodilhados em galhos de árvores, a alguns metros do chão, um hábito não observado entre as jararacas-da-seca”, conta Kokubum.
Em São Paulo, Barbo e Grazziotin analisaram as características morfológicas e genéticas do exemplar, uma fêmea de cerca de 80 centímetros (cm) de comprimento e coloração acinzentada no dorso e esbranquiçada no ventre. Vinte e duas características anatômicas – como o porte reduzido do animal adulto, coloração e número de escamas em diferentes partes do corpo – foram combinadas e permitiram afirmar que o exemplar do pico do Jabre não pertence a nenhuma das espécies até então descritas do gênero Bothrops. Dados genéticos confirmaram a ideia sugerida pelas diferenças anatômicas. Os genes da jararaca-do-jabre guardam alterações que a distinguem das outras espécies de Bothrops, afirmam os pesquisadores no artigo publicado em 19 de janeiro deste ano no Canadian Journal of Zoology.
Além de ser uma espécie nova, a B. jabrensis representa uma linhagem que, nos últimos 8 milhões de anos, evoluiu separadamente das outras sete existentes – os especialistas, agora, separam as 48 espécies de jararacas em oito grupos ou linhagens. “Do ponto de vista evolutivo, a nova espécie é mais antiga do que as seis que integram o grupo Bothrops jararaca, das chamadas jararacas-da-mata, encontradas do Rio Grande do Sul à Bahia, exclusivamente em áreas de Mata Atlântica, e as nove do grupo Bothrops neuwiedi, das jararacas-pintadas, comuns no Cerrado, no Pantanal e em partes da Mata Atlântica”, conta Barbo, do Butantan.
A jararaca-do-jabre possivelmente surgiu em algum momento daquele passado distante, quando o clima se tornou menos úmido e a vegetação florestal, que antes cobria boa parte do que hoje é o interior do Nordeste, retraiu-se para a faixa litorânea, abrindo espaço para a Caatinga. Uma consequência da retração das florestas teria sido a permanência de algumas porções isoladas de floresta (enclaves) em áreas altas e úmidas, como o pico do Jabre, onde populações de serpentes podem ter ficado aprisionadas e, com o tempo, acumulado características que as tornaram distintas das populações das áreas mais baixas e secas.
Fenômeno semelhante explica a existência de diferentes espécies de jararaca em ilhas próximas à costa brasileira. É o caso de B. germanoi, encontrada apenas na ilha da Moela, a 2 km da ponta do Munduba, no Guarujá. Com área de apenas 0,3 km2, a Moela abriga o farol mais antigo do litoral paulista, inaugurado em 1830, e é ocupada pela Marinha. Em uma expedição realizada em 2018, Grazziotin e outros pesquisadores do Butantan coletaram o exemplar – um macho adulto – que fundamentou a descrição da nova espécie, cujo nome científico, B. germanoi, homenageia Valdir Germano, técnico de laboratório que há mais de 30 anos trabalha na coleção herpetológica do Butantan e é considerado um dos maiores especialistas brasileiros em identificação de serpentes.
Com o nome popular de jararaca-da-moela, a nova espécie foi descrita em um artigo publicado em 21 de janeiro na revista Systematics and Biodiversity, aumentando para cinco o número de jararacas insulares descritas. Além dela, outras três são do litoral paulista: B. otavioi, da ilha da Vitória, e B. alcatraz, da ilha de Alcatrazes, no norte; e B. insularis, da ilha da Queimada Grande, no sul. A quinta espécie insular, B. sazimai, é originária da ilha dos Franceses, no litoral do Espírito Santo.
Com escamas em tons cinza e marrom, a jararaca-da-moela é uma das menores serpentes do gênero Bothrops: tem apenas 60 cm de comprimento – as espécies maiores podem ter mais de 1,5 m – e uma cabeça proporcionalmente menor que a das outras jararacas insulares do litoral paulista. Cerca de 20 características morfológicas combinadas a distinguem das jararacas do continente e das outras espécies das ilhas, além de diferenças genéticas. “As variações genéticas entre a jararaca-da-moela e as demais espécies insulares e do continente são pequenas, mas já justificam a classificação em uma nova espécie”, afirma o ecólogo Márcio Martins, da Universidade de São Paulo (USP). Ele não participou do estudo, mas é especialista em ecologia de jararacas e um dos responsáveis pela revisão das serpentes incluídas na última edição do livro vermelho de espécies ameaçadas do ICMBio.
Grazziotin e seus colaboradores atribuem a reduzida diferença genética entre a jararaca-da-moela e as populações do continente ao curto tempo de separação entre elas. Eles calculam que as serpentes dessa ilha foram isoladas das populações de terra firme há apenas 7 mil anos, em um dos últimos episódios de elevação do nível do mar. A subida do oceano teria coberto as florestas que conectavam essas ilhas ao continente. “Alguns especialistas podem considerar que as jararacas das ilhas não são espécies plenas, distintas das do continente, mesmo havendo diferenças morfológicas evidentes”, conta Barbo. “Nós, no entanto, interpretamos esses dados como sendo resultado de especiação recente”, explica.
A análise genética trouxe ainda uma surpresa. Mostrou que as populações das ilhas são geneticamente mais próximas às de certas áreas do continente do que as populações continentais ou insulares o são entre si. Esse dado corrobora uma ideia apresentada em 1973 pelo zoólogo Paulo Vanzolini (1924-2013), segundo a qual a fauna dessas ilhas teria se originado a partir de populações ancestrais distribuídas ao longo da costa. Essas espécies insulares podem ter tido histórias evolutivas bem diferentes umas das outras”, conta Grazziotin.
“Esse trabalho é importante porque propõe um modelo para explicar como surgiu e se diversificou a biota dessas ilhas”, comenta o zoólogo Paulo Passos, especialista em evolução de serpentes do Museu Nacional (MN) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). [Pesquisa FAPESP]
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