Um dia, ao se ver preso em um engarrafamento, o professor do Instituto de Física Teórica da Universidade Estadual Paulista (IFT-Unesp) George Matsas começou a refletir sobre as semelhanças entre certas situações de trânsito, como as que levam a engavetamentos, e fenômenos da física de buracos negros. Para refinar essa comparação, Matsas e a estudante de mestrado Luanna K. de Souza descreveram um modelo análogo de buraco negro aplicado ao tráfego veicular.
Buracos negros são regiões nas quais o campo gravitacional é tão intenso que nada consegue escapar, nem mesmo a luz. Eles capturam partículas, objetos e radiação que passam pelo seu horizonte de eventos, nome dado à fronteira do buraco negro (que corresponde à mancha escura no centro das fotografias tiradas pelo Telescópio de Horizonte de Eventos, como a da foto acima). Tudo que passar por essa região será inevitavelmente sugado em direção a um pequeno ponto que fica na região, chamado de singularidade, cujas propriedades os cientistas ainda desconhecem.
A ideia de buscar analogias entre os gigantes cósmicos e outros eventos remonta ao começo dos anos 1980. Naquela época, de forma independente, dois físicos, Vincent Moncrief, da Universidade Yale, e Bill Unruh, da Universidade da Colúmbia Britânica, perceberam que algumas características dos buracos negros surgiam também em estudos envolvendo outras situações no campo de relatividade geral. O conceito ganhou relevância porque permitiu que fenômenos impossíveis de serem observados diretamente nos buracos negros reais pudessem ser pelo menos parcialmente estudados a partir dos chamados buracos negros análogos.
É claro, entre os buracos negros análogos e os reais existem muitas e importantes distinções. “Em um buraco negro de verdade nada escapa: radiação, informação, nada. Em um buraco negro análogo apenas alguma coisa não escapa. Essa é a diferença estrutural”, explica Matsas. No trabalho desenvolvido na Unesp com apoio da FAPESP, é a transmissão da informação do acionamento dos freios dos carros, que ocorre pelas luzes das lanternas traseiras, que fica presa no buraco negro análogo.
No artigo Black-hole analog in vehicular traffic, publicado no American Journal of Physics, os pesquisadores estão propondo uma mudança de patamar no uso desses modelos, ao sair do campo de estudo da relatividade geral e entrar em situações do nosso cotidiano. A publicação foi destacada no portal SciLight, que seleciona as pesquisas mais interessantes dos periódicos da American Institute of Physics, um centro de apoio à pesquisa em física dos Estados Unidos.
Matsas e Souza dizem que os engavetamentos que vitimam simultaneamente diversos carros nas estradas podem ser causados por “buracos negros veiculares”. “Nem todo engavetamento deve ser devido à existência de um buraco negro veicular, mas nós entendemos que esses buracos negros levam a uma boa chance de engavetamento”, diz Matsas.
Imagine uma fileira de carros andando em linha reta por uma estrada. Eventualmente, os veículos chegam a uma região de neblina e, sem conseguir enxergar direito, o primeiro motorista é obrigado a frear e diminuir a velocidade. A luz do freio transmite a informação da redução de velocidade ao motorista imediatamente atrás, que também freia e desacelera. Ao desacelerar, por sua vez, ele também aciona a luz de freio, fazendo com que o carro que vem atrás também reduza. A desaceleração ocorrerá sucessivamente, ao longo de toda a fileira. Se os carros estiverem andando a uma distância segura uns dos outros, os motoristas terão tempo de reação suficiente e todos poderão desacelerar sem que nenhum acidente aconteça. Nessa situação, a informação luminosa do freio será propagada para trás, por meio do acionamento das luzes de freio dos veículos, ao longo da fileira, enquanto o movimento dos carros segue à frente.
Porém, se os carros estiverem muito próximos o resultado será outro. Quando o primeiro motorista entra na região de baixa visibilidade e freia, surgirá um horizonte de eventos que, assim como em um buraco negro real, vai impedir a propagação da informação para longe.
Isso acontece porque, ao receber a informação da luz de freio do carro da frente, o segundo motorista levará mais tempo para reagir, por conta da proximidade e da baixa visibilidade, e vai demorar mais para frear. Forma-se, então, uma reação em cadeia na qual o tempo de reação suficiente para evitar um acidente fica cada vez mais curto. Eventualmente, chegará o momento em que algum motorista não terá tempo suficiente para acionar o freio antes de bater no carro à frente, impedindo que a informação seja enviada para o próximo carro. Esse segundo carro, por sua vez, irá colidir e também não terá tempo para acionar a luz de freio, dando início a uma colisão em série. A colisão deste segundo veículo que não acionou as luzes de freio pode ser comparada à formação abrupta de uma singularidade de buraco negro, porque resultou na interrupção da transmissão da informação por via luminosa. E, sem essa informação, os carros na estrada não terão possibilidade de escapar do engavetamento, devido à escassez de tempo para reação.
Em buracos negros reais, a singularidade é uma região misteriosa, cujas propriedades físicas são pouco compreendidas; “não sabemos como descrever a propagação da informação na região bem próxima da singularidade”, comenta o docente do IFT.
Matsas pensa ser esta a primeira vez que modelos análogos de buracos negros são aplicados para estudar situações do cotidiano, o que aponta para um novo potencial do campo. Ele diz não ter certeza de que o uso do modelo auxilie na prevenção de acidentes na estrada, mas espera encontrar pessoas interessadas em explorar essa possibilidade. “Gostaria muito de saber, da parte dos grupos de dinâmica veicular, se esse formalismo informacional poderia ser útil na prática. Não sei se isso vai ocorrer, mas eu gostaria que sim”, diz.
O artigo Black-hole analog in vehicular traffic pode ser lido em: https://aapt.scitation.org/doi/10.1119/5.0091957.
* Com informações de Malena Stariolo, do Jornal da Unesp. [FAPESP]
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