Um padrão de oscilação identificado nos sinais produzidos por duas explosões de raios gama, um dos eventos mais energéticos do Universo, parece indicar a existência de estrelas de nêutrons com massa pelo menos 20% maior do que a registrada até hoje. O tempo de vida dessas megaestrelas de nêutrons, nunca observadas até agora, seria de centésimos a décimos de segundo. Elas se formariam após a colisão e a fusão de duas estrelas de nêutrons menores. Esse é um dos fenômenos associados à produção de explosões de raios gama de curta duração, que geram sinais com menos de 2 segundos de duração. Durante sua ínfima existência, as estrelas de nêutrons hipermassivas girariam em torno de seu eixo a um ritmo equivalente a 78 mil rotações por minuto, o dobro do observado em qualquer objeto celeste conhecido.
“Analisamos mais de 700 explosões de raios gama de curta duração detectadas nas últimas décadas e encontramos dois sinais que, segundo simulações, são compatíveis com a existência de estrelas de nêutrons hipermassivas”, diz a astrofísica brasileira Cecília Chirenti, da Universidade Federal do ABC (UFABC) e da Universidade de Maryland, nos Estados Unidos, autora principal de artigo publicado on-line na revista científica Nature nesta segunda-feira (9/1). “Esse tipo de estrela de nêutrons seria um estágio intermediário e dinâmico do processo de fusão das estrelas menores, que vai gerar como resultado final um buraco negro.”
A origem das estrelas de nêutrons tradicionais (não hipermassivas) é bem conhecida. Elas se formam a partir do núcleo remanescente de estrelas maiores que chegaram ao final da vida, explodiram e expeliram suas camadas mais externas de matéria. Essa explosão é denominada supernova. A massa que sobra é composta predominantemente por nêutrons (daí o nome desse tipo de estrela) e se concentra no que restou do núcleo da estrela original. Uma estrela de nêutrons típica é uma esfera com cerca de 20 quilômetros (km) de diâmetro onde se acumula uma massa igual ou equivalente a uma ou duas vezes à do Sol. Detalhe: o diâmetro do Sol é cerca de 70 mil vezes maior do que o de uma estrela de nêutrons. Apenas buracos negros são mais compactos do que uma estrela de nêutrons.
As duas explosões que, segundo o estudo, geraram estrelas de nêutrons hipermassivas foram registradas pelo Observatório de Raios Gama Compton, um telescópio espacial da agência espacial norte-americana (Nasa), que funcionou entre 1991 e 2000. A primeira delas foi registrada em 11 de junho de 1991 e a outra em 1º de novembro de 1993. O indício característico da formação de uma grande estrela de nêutrons de vida fugaz é classificado como uma oscilação quase periódica (QPO), ou seja, a estrela oscila algumas vezes muito rapidamente e depois deixa de apresentar essa variação.
Em um ponto do processo de fusão das estrelas de nêutrons menores, o sinal produzido na região dos raios gama se intensifica e, por um breve momento, ocorre uma emissão simultânea de duas frequências. De acordo com cálculos dos pesquisadores, a chance de essa oscilação ocorrer por acaso, em vez de ser decorrência da formação de uma estrela de nêutrons hipermassiva, é de menos de uma em 3 milhões.
Simulações computacionais indicam que a formação de estrelas de nêutrons hipermassivas deve emitir ondas gravitacionais (ondulações na curvatura do tempo-espaço) que apresentam esse mesmo padrão de oscilação, QPO. “Mas a atual geração de observatórios terrestres de ondas gravitacionais [Ligo, Virgo e Kagra] não tem sensibilidade suficiente para captar essas variações”, explica Chirenti, que faz seus estudos no Centro de Voos Espacias Goddard (GSFC) da Nasa, que também fica em Maryland. Por ora, a alternativa seria analisar as explosões de raios gama para estudar essa forma elusiva de estrela de nêutrons hipermassiva, propõe o artigo.
Para o físico Raul Abramo, do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IF-USP), que não participou do trabalho, os resultados do artigo abrem uma fascinante janela sobre um dos eventos mais dramáticos e energéticos do Universo, a colisão de duas estrelas de nêutrons. “O estudo indica que podemos usar não apenas as ondas gravitacionais, mas também os raios gama para estudar o estado e a dinâmica dos instantes finais desses sistemas”, comenta Abramo, especialista em cosmologia. “Mais do que isso: se confirmadas, essas detecções podem ter mostrado as primeiras evidências de um tipo totalmente novo de objeto, as estrelas de nêutrons hipermassivas. Esse seria o último estado da matéria antes de ela sucumbir à atração gravitacional e formar um buraco negro.”
O físico italiano Riccardo Sturani, do Instituto de Física Teórica da Universidade Estadual Paulista (IFT-Unesp), afirma que é difícil dar explicações mais precisas sobre o significado dos resultados apresentados no trabalho de Chirenti e seus colaboradores. “Não está claro o que o sinal dessas duas explosões de raios gama tem de particular em relação a outras explosões. Mas, certamente, o estudo impulsiona ainda mais a procura por oscilações do tipo QPO na área de ondas gravitacionais”, diz Sturani, especialista nesse tipo de emissão. Ainda neste semestre, os observatórios Ligo, nos Estados Unidos, Virgo, na Europa, e Kagra, no Japão, devem começar uma nova rodada de observações conjuntas de possíveis ondas gravitacionais.
Artigo científico
CHIRENTI, C. et al. Kilohertz quasiperiodic oscillations in short gamma-ray bursts. Nature. On-line. 9 jan. 2023.
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