O composto candidato a vacina contra a dengue desenvolvido pelo Instituto Butantan, de São Paulo, mostrou-se seguro e ofereceu bom nível de proteção contra a doença, segundo dados preliminares divulgados em dezembro de um ensaio clínico de fase 3, última etapa antes do pedido de registro do produto nas agências regulatórias. Os eventos adversos graves, que podem exigir internação para tratamento, foram extremamente raros: houve três casos (ainda não especificados) entre as 10.259 pessoas que receberam o imunizante, o correspondente a 0,03% do total.
Os efeitos adversos observados com frequência maior foram bem leves: dor, inchaço e vermelhidão no local da picada e, em casos mais raros, febre e manchas vermelhas pelo corpo que desapareceram em horas. Conhecido pelo nome de Butantan-DV, o candidato nacional a vacina contra a dengue também apresentou uma eficácia inicial considerada bastante animadora: reduziu em 79,6% o risco de adoecer entre as pessoas que o receberam e foram depois naturalmente infectadas pelo vírus da dengue, em comparação com aquelas que haviam tomado um composto inerte (placebo).
“Esse é um nível de proteção excelente para uma formulação produzida com vírus vivo atenuado”, afirma a neurologista Fernanda Boulos, diretora médica do Instituto Butantan e coordenadora do ensaio clínico atual com a candidata a vacina. Ainda em dezembro, o instituto encaminhou os resultados à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o órgão regulador que autoriza o uso e a comercialização de medicamentos no país e acompanha o desenvolvimento do potencial imunizante. Antes de entrar com o pedido de registro, porém, será preciso aguardar o término do estudo.
Só em meados de 2024, quando se completarão cinco anos de acompanhamento do último participante a ingressar na pesquisa, a eficácia final do composto deverá ser conhecida. A dengue é uma das doenças infecciosas mais importantes do mundo. A cada ano, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), de 100 milhões a 400 milhões de pessoas são infectadas pelo seu agente causador, um vírus transmitido pela picada de mosquitos do gênero Aedes, em especial da espécie Aedes aegypti. A maior parte (80%) das pessoas não apresenta sintomas, mas centenas de milhares acabam internadas para tratamento e alguns milhares morrem.
Destinado a avaliar a segurança e a eficácia da Butantan-DV, o estudo atual, possivelmente o maior ensaio clínico de uma vacina já feito no país exclusivamente por pesquisadores brasileiros, conta com a participação de 16.235 voluntários com idades entre 2 anos e 59 anos em 13 estados. Entre fevereiro de 2016, quando começou o teste, e julho de 2019, quando entrou o último participante, 10.259 indivíduos foram selecionados aleatoriamente para receber a aplicação no braço de uma dose do composto criado para gerar imunidade contra as quatro variedades (sorotipos) conhecidas do vírus da dengue. Outros 5.976, escolhidos também ao acaso, tomaram placebo.
Desde então, todos vêm sendo acompanhados de tempos em tempos em um dos 16 centros montados com auxílio do Butantan em universidades e institutos brasileiros para a realização de ensaios clínicos. O objetivo do seguimento é contabilizar o total de indivíduos que desenvolvem dengue depois de receber a formulação do Butantan ou o placebo e registrar o surgimento de possíveis efeitos adversos.
Dois anos após o início dos testes, foram registrados 35 casos de dengue entre os 10.259 participantes que tomaram a Butantan-DV (0,34% dos imunizados) e 100 entre os 5.976 aos quais foi administrado placebo (1,67%). A Butantan-DV parece oferecer proteção maior a quem foi anteriormente exposto ao vírus do que a quem não foi. Ela reduziu em 89,2% o risco de dengue em pessoas que previamente haviam tido a doença e em 73,5% naquelas que não haviam tido dengue antes de entrar no estudo. Essa diferença no nível de proteção já havia sido observada nos testes das duas outras vacinas contra a dengue disponíveis: a Dengvaxia, da farmacêutica francesa Sanofi Pasteur, já aprovada para uso no Brasil em uma população específica; e a Qdenga, da japonesa Takeda, que se encontra sob análise da Anvisa.
“A eficácia inicial do produto do Butantan foi boa, mas a global só será conhecida ao final do estudo. Até lá mais casos de dengue podem ocorrer em cada um dos grupos e alguma queda na produção de anticorpos, como se vê com outros imunizantes”, conta o imunologista Mauro Teixeira, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que coordena um dos centros que avalia o desempenho do composto. “A análise interina, planejada desde o início do estudo, destinava-se a avaliar principalmente a segurança da Butantan-DV e se o estudo deveria continuar ou ser interrompido. A conclusão é de que ela parece ser muito segura e devemos seguir em frente.”
Os especialistas consideram inadequado comparar a eficácia de diferentes vacinas. A razão é que os testes costumam ser feitos seguindo protocolos distintos, em ambientes e populações diversos. Mesmo assim, olhar os dados do efeito protetor das vacinas da Sanofi Pasteur e da Takeda pode dar uma ideia de como anda o desempenho da Butantan-DV. As três formulações usam vírus atenuados, isto é, que preservam a capacidade de se multiplicar, mas não são capazes de causar doença.
A Qdenga, da farmacêutica japonesa, é produzida a partir de uma das variedades do vírus, a DENV-2, modificada para apresentar as proteínas de superfície dos quatro sorotipos. Ela reduziu em cerca de 80% o risco de desenvolver dengue na população geral e em 75% nas pessoas nunca expostas ao vírus, segundo artigo publicado em novembro de 2019 no New England Journal of Medicine. Em dezembro de 2022, a Comissão Europeia aprovou a comercialização da vacina, administrada em duas doses, nos países do bloco para ser aplicada em pessoas a partir de 4 anos de idade.
Já a Dengvaxia, o imunizante da Sanofi Pasteur, é elaborada com o vírus da febre amarela atenuado e modificado para apresentar as proteínas dos quatro sorotipos da dengue. Diversos ensaios clínicos indicaram que a vacina, aplicada em três doses, tem uma eficácia mais baixa. A Dengvaxia diminuiu em quase 60% o risco de dengue em quem já tinha sido exposto ao vírus previamente e em 38% em quem não tinha. Posteriormente, verificou-se que a vacina estava associada a uma frequência maior de internação hospitalar em crianças com menos de 9 anos. Em 2015, a Dengvaxia foi aprovada para uso em diferentes países, inclusive no Brasil, para pessoas com idades entre 9 e 45 anos que já tiveram dengue anteriormente.
Apesar de promissores, os dados iniciais de eficácia da Butantan-DV devem ser vistos com alguma cautela. A razão é que, por ora, seu efeito protetor só pôde ser conferido contra duas das quatro variedades conhecidas do vírus da dengue: o DENV-1 e o DENV-2. A formulação reduziu, em média, em 89,5% o risco de desenvolver dengue provocada pelo sorotipo 1 e em 69,6% a causada pelo sorotipo 2, segundo os dados divulgados pelo Butantan. Os vírus DENV-3 e DENV-4 não circulam no país há alguns anos e ainda não é possível saber como ela se comporta contra eles.
“Por causa da maneira como é formulada, a Butantan-DV deveria, teoricamente, produzir uma proteção mais baixa contra o sorotipo 2. Mesmo assim, ela foi muito boa”, explica o virologista Maurício Lacerda Nogueira, da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (Famerp), coordenador de um dos centros que participam dos estudos com o composto do Butantan. “Não espero que essa formulação apresente um desempenho pior contra os sorotipos 3 e 4, mas isso ainda precisa ser demonstrado”, reforça o pesquisador.
Aferir o desempenho da Butantan-DV diante das variedades DENV-3 e DENV-4 depende de um fator incontrolável: que esses dois sorotipos voltem a circular no país até o final do estudo. Há mais de uma década não se detectam casos de dengue provocados pelo DENV-3. E o sorotipo 4 foi responsável por um único surto epidêmico, entre 2012 e 2014. Caso essas variedades não reapareçam, a saída pode ser a realização de ensaios clínicos em países nos quais os sorotipos 3 e 4 estejam presentes. Uma alternativa, polêmica, embora aceitável do ponto de vista ético, é repetir o teste realizando infecção experimental em voluntários usando variedades de DENV-3 e DENV-4 enfraquecidas. Se nada disso ocorrer, existe ainda a possibilidade de solicitar às agências reguladoras a liberação do uso da Butantan-DV apenas contra os sorotipos 1 e 2.
Há tempos se busca um imunizante tetravalente, que ofereça boa proteção contra as quatro variedades do vírus, porque cada uma delas pode infectar uma mesma pessoa em momentos diferentes e causar a doença. Um indivíduo picado por um mosquito carregando o DENV-1, depois de recuperado, desenvolve imunidade contra esse sorotipo. Mais adiante, porém, ele pode ser infectado por alguma das outras três variedades e adoecer. Além disso, uma segunda infecção, provocada por um sorotipo diferente daquele da primeira, tende a ser mais grave. Os anticorpos produzidos contra uma variedade do vírus nem sempre neutralizam as outras de forma eficiente, gerando proteção parcial. Essa imunização incompleta, segundo algumas hipóteses, poderia facilitar a entrada do vírus nas células em que se reproduz e levar a uma infecção mais grave.
Os dados divulgados em dezembro sobre a Butantan-DV resultam de mais de uma década de trabalho e do investimento de ao menos R$ 300 milhões. A verba para a vacina veio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), da FAPESP, da Fundação Butantan, do Ministério da Saúde e, mais recentemente, de uma parceria com o laboratório Merck Sharp & Dohme (MSD). A multinacional farmacêutica norte-americana trabalha no desenvolvimento de um imunizante semelhante para ser comercializado fora da América Latina (ver Pesquisa FAPESP nº 275).
Há pouco mais de uma década, o Butantan fechou um acordo de licenciamento com os Institutos Nacionais de Saúde (NIH) dos Estados Unidos para usar o protótipo de vacina criado pela equipe de Stephen Whitehead, especialista em imunizantes contra vírus transmitidos por insetos, e desenvolver o produto final, com exclusividade de comercialização no Brasil e nos demais países da América Latina.
No Laboratório de Doenças Infecciosas dos NIH, Whitehead e colaboradores conseguiram reduzir a capacidade de o vírus da dengue causar doença eliminando um pequeno trecho de seu material genético. Funcionou para os sorotipos 1, 3 e 4, mas não para o 2. Os pesquisadores, então, criaram um vírus híbrido, também chamado de quimera, que contém a parte interna do DENV-4 e a externa do DENV-2. Os quatro componentes foram, então, misturados em uma formulação contra a dengue.
“Os NIH haviam fornecido o protótipo vacinal e, no Butantan, fizemos todo o desenvolvimento do produto vacinal, liofilizado e seguindo boas práticas laboratoriais”, lembra o imunologista Jorge Kalil, da Universidade de São Paulo (USP), que dirigiu o instituto de 2011 a 2017. “A versão fornecida pelos NIH precisava ser mantida à temperatura de 80 graus Celsius negativos, o que exige freezers especiais e dificultaria a distribuição. A equipe de desenvolvimento do Butantan conseguiu aumentar a capacidade de produzir o vírus, melhorar sua purificação e liofilizar o composto [transformar em pó, mais estável à temperatura ambiente] sem que perdesse a capacidade de despertar a produção de anticorpos”, afirma.
Testes anteriores realizados no Brasil já sugeriam que a Butantan-DV pudesse apresentar boa eficácia. O ensaio clínico de fase 2, desenhado para avaliar a segurança e a imunogenicidade em 250 adultos, mostrou que de 76% a 92% dos indivíduos que receberam o composto e não haviam sido expostos antes ao vírus passaram a produzir anticorpos contra os quatro sorotipos (ver Pesquisa FAPESP nº 291). Entre os que já tinham tido dengue, essa proporção variou de 77% a 82%, segundo artigo publicado em 2020 na Lancet Infectious Diseases. “Essas pessoas mantinham níveis elevados de anticorpos neutralizantes”, conta Kalil, coautor do trabalho.
Apesar de as vacinas da Sanofi Pasteur e da Takeda estarem à frente, Fernanda Boulos, do Butantan, afirma que os resultados iniciais do estudo de fase 3 representam um passo importante, embora ainda seja longo o caminho até a eventual aprovação pela Anvisa, e que é relevante se chegar a um imunizante brasileiro contra a dengue. “Ter uma vacina de produção nacional garante a soberania ao país e a capacidade de atender mais facilmente ao sistema público de saúde”, afirma.
Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.
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