A capacidade instalada de geração de energia por painéis solares fotovoltaicos responde por cerca de 11% da matriz elétrica brasileira. Esse percentual tem grande potencial para crescer com a instalação desses sistemas em telhados, galpões, terrenos e plataformas sobre superfícies aquáticas. Estudo realizado no país mostra que a cobertura de apenas 1% dos corpos d’água de represas artificiais com usinas solares instaladas sobre bases flutuantes permitiria ao Brasil gerar energia elétrica limpa e renovável suficiente para atender 16% do consumo de eletricidade do país. É o equivalente ao abastecimento proporcionado pela usina hidrelétrica de Itaipu, a segunda maior do mundo.
A geração elétrica não é o único benefício proporcionado pelos chamados sistemas fotovoltaicos flutuantes, conhecidos entre especialistas pela sigla SFVF. Eles também são capazes de reduzir a evaporação dos reservatórios de água, tornando-se um reforço hídrico para localidades que não têm segurança no abastecimento, como a região do semiárido brasileiro.
As constatações foram feitas pela equipe do Programa de Planejamento Energético (PPE) do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-graduação e Pesquisa de Engenharia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Coppe-UFRJ). Dois artigos com os resultados dos trabalhos foram publicados em revistas científicas internacionais. O estudo sobre o potencial técnico de geração de eletricidade por meio de SFVF saiu na edição de janeiro de 2022 da Renewable Energy.
O outro trabalho, que teve como enfoque a capacidade dos SFVF em evitar a evaporação de água em açudes do semiárido, foi apresentado inicialmente como tese de doutorado defendida no PPE pela engenheira agrícola Mariana Padilha Campos Lopes, sob a orientação de Marcos Aurélio Vasconcelos Freitas e David Castelo Branco, ambos da Coppe. Depois, um artigo com os resultados da tese foi divulgado no Journal of Cleaner Production, em novembro de 2020.
“Qualquer tipo de cobertura sobre a água interfere nas variáveis que geram a evaporação, como a incidência direta de radiação solar sobre a superfície, a velocidade do vento e a temperatura do ambiente”, explica Lopes. “Os SFVF, além de reduzirem a evaporação, geram energia que pode ser utilizada para alimentar bombas de água e sistemas de irrigação ou mesmo para inserção da energia na rede de distribuição.”
O trabalho da pesquisadora usou como estudo de caso os 618 açudes da bacia Apodi-Mossoró, no Rio Grande do Norte, onde em média 45% da capacidade volumétrica dos reservatórios é evaporada anualmente. Isso faz com que os açudes recorrentemente atinjam volumes considerados críticos, obrigando os gestores públicos a trazer água de outras localidades para o abastecimento local com caminhões-pipa.
A instalação de SFVF apenas sobre a área ocupada pelo volume morto dos açudes da bacia do Apodi-Mossoró seria suficiente suprir a demanda de energia elétrica de 1,33 milhão de residências, ou seja, abasteceria com folga toda a população do Rio Grande do Norte, que soma 1,23 milhão de moradias. Volume morto é a reserva de água mais profunda, que fica abaixo dos canos de captação. O estudo apontou que a água poupada anualmente somaria 20,6 milhões de metros cúbicos (m³), algo como três vezes o volume da lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro. Se as usinas solares ocupassem 50% do total da área dos açudes da bacia Apodi-Mossoró, a geração de energia seria suficiente para abastecer 5 milhões de residências e a água preservada encheria 13 vezes a lagoa Rodrigo de Freitas.
A tecnologia empregada nos SFVF não se diferencia da utilizada nas usinas em solo ou nos sistemas instalados sobre telhados e galpões, que se tornaram comuns em todo o país, a não ser pela necessidade de montar os painéis sobre uma plataforma flutuante e fixá-la com um sistema de ancoragem (ver infográfico). A Empresa de Pesquisa Energética (EPE) do Ministério de Minas e Energia (MME) publicou em 2020 uma nota técnica, “Expansão da geração – Solar fotovoltaica flutuante”, na qual calcula que os flutuadores e a ancoragem podem representar um acréscimo de 25% aos custos de instalação de uma usina fotovoltaica em solo. Quando levados em conta todos os fatores envolvidos – entre eles o valor de aquisição e preparo de um terreno para a instalação da usina em solo –, a EPE calcula que os sistemas flutuantes tenham, em média, um custo 18% superior.
Na mesma nota técnica, a EPE também informa que os sistemas flutuantes podem ser mais eficientes na geração de energia. As células de silício dos painéis fotovoltaicos perdem eficiência com o aumento da temperatura. A instalação dos módulos sobre a água permite uma temperatura operacional entre 5% e 20% inferior ao observado em solo, conforme o clima de cada região. O volume do ganho de eficiência, porém, não é consenso entre especialistas internacionais do tema. Estudos experimentais mostram resultados distintos, que vão de benefícios inexpressivos até resultados superiores a 20%. As estimativas mais usuais são de ganhos entre 9% e 15%.
O geógrafo Freitas, da Coppe, avalia que o custo inicial de investimento retarda o avanço mais rápido dos SFVF no país. “Usinas flutuantes têm grande potencial, mas elas ainda não são a bola da vez entre os investidores”, afirma. “O Brasil tem muita área disponível para a implementação de centrais fotovoltaicas em solo, uma operação já conhecida e testada.” Outro obstáculo é que ainda não há estudos no Brasil sobre o impacto dos SFVF no ambiente aquático nem mesmo procedimentos estabelecidos de licenciamentos e autorizações da Agência Nacional de Águas (ANA) para o uso dos espelhos d’água com a finalidade de geração de energia.
No mundo, a geração elétrica proveniente de SFVF alcançou em 2020 2,6 gigawatts-pico de potência (GWp) — essa medida representa o pico de produção, ou seja, a geração máxima de energia das usinas no momento de pico de insolação. Esse dado faz parte de compilação. feita pelos autores do artigo publicado na Renewable Energy. Os países onde o uso da tecnologia é mais disseminado são Japão e Coreia do Sul, devido à baixa disponibilidade de áreas em solo para a instalação de usinas, e China, que usa o sistema flutuante principalmente sobre lagos de mineração. Em países como Austrália, Espanha, Índia, Irã, Jordânia, Chile e Estados Unidos, o investimento no sistema privilegia regiões áridas e semiáridas com o objetivo de reduzir a evaporação de água e aumentar a segurança hídrica. Portugal é outro país onde o sistema já é empregado.
O Brasil apresenta potencial promissor para a instalação de SFVF, segundo Lopes, em razão da variedade e quantidade de corpos d’água em seu território. São cerca de 241 mil corpos d’água catalogados pela ANA, entre reservatórios hidrelétricos, lagos, lagoas, açudes, represas, rios e bacias. Os corpos d’água artificiais, considerados no estudo do Coppe, somam 174,5 mil, entre represas de hidrelétricas, tanques de pequenas hidrelétricas e outros reservatórios de água para irrigação e consumo humano. Como não são reservas naturais, mas criadas pelo homem, seu aproveitamento apresenta menor impacto ambiental.
O estudo considerou que a instalação de painéis solares sobre 1% da superfície dos corpos d’água artificiais, o que corresponderia a uma área de 45,5 mil quilômetros quadrados (km²), geraria 79.377 gigawatts hora (GWh) por ano de eletricidade oriundos de uma potência instalada de 43.276 megawatts-pico (MWp). Representaria cerca de 12,5% da geração total de eletricidade no Brasil, enquanto Itaipu responde por 12,7%. A energia gerada com os SFVF seria suficiente para abastecer cerca de 41 milhões de domicílios.
Os reservatórios das usinas hidrelétricas são os principais espelhos d’água artificiais disponíveis para a instalação de usinas fotovoltaicas. De acordo com o estudo, sozinhos eles respondem por 73% do potencial total do país. Freitas ressalta que essas represas têm uma vantagem competitiva importante para projetos SFVF, uma vez que a geração conjunta hidrelétrica e solar poderia proporcionar sinergias, como o uso conjunto da rede de transmissão de energia.
Para Rodrigo Sauaia, presidente-executivo da Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica (Absolar), as usinas flutuantes têm características interessantes, sendo as principais o aproveitamento de áreas alagadas, reduzindo a demanda por terrenos, a maior eficiência na geração e a redução da evaporação nos reservatórios. “Esse conjunto de atrativos desperta o interesse dos investidores. Temos vários associados buscando informações”, afirma.
Segundo Sauaia, o que faltava para os SFVF era uma regulamentação adequada, que veio com a Lei nº 14.300, de janeiro de 2022. Entre outras definições, essa legislação classificou as usinas solares flutuantes na mesma categoria das micro e minigeradoras de energia (até 5 MW) e estendeu a elas os benefícios fiscais do Regime Especial de Incentivos para o Desenvolvimento da Infraestrutura (Reidi).
Em novembro, a capacidade de geração de energia solar no Brasil alcançou 22 gigawatts (GW) na soma das usinas de grande porte em solo, responsáveis por 7 GW, e dos sistemas de geração própria em telhados, sobre galpões e em pequenos terrenos, que respondem por 15 GW. “A geração solar é a que mais cresce no país e as usinas fotovoltaicas flutuantes apresentam um grande potencial para expandir ainda mais a geração de energia renovável”, diz Sauaia.
O Brasil tem apenas usinas fotovoltaicas flutuantes experimentais. A Centrais Elétricas Brasileiras (Eletrobras) mantém uma geração de 5 megawatts (MW) na usina hidrelétrica de Balbina, no Amazonas, e uma geração de 1 MW no reservatório da hidrelétrica de Sobradinho, na Bahia. A Companhia de Energia de São Paulo (Cesp) produz 50 quilowatts (kW) na usina de Rosana, em São Paulo.
No arquipélago de Fernando de Noronha, em Pernambuco, o grupo Neoenergia e a Companhia Pernambucana de Saneamento (Compesa) anunciaram em outubro do ano passado a construção de uma usina fotovoltaica flutuante no espelho d’água do açude do Xaréu, uma área de 4.900 m2. Estima-se que o sistema terá uma geração anual de 1.238 megawatt-hora (MWh) e será responsável por suprir mais de 40% do consumo de energia na ilha. A troca de geração térmica por solar reduzirá em 1,6 mil toneladas de dióxido de carbono (CO2) emitido anualmente em Fernando de Noronha. O investimento é estimado em R$ 10 milhões.
De acordo com Ana Christina Mascarenhas, superintendente de eficiência energética da Neoenergia,
a instalação da usina sobre o açude do Xaréu, que responde por cerca de 25% dá água distribuída na ilha, é importante porque há uma limitação de terrenos para a instalação de sistemas fotovoltaicos em Fernando de Noronha.“A possibilidade de evitar a evaporação e reter água no reservatório também influenciou a decisão, apesar de não ter sido o motivo principal”, afirma Mascarenhas.
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