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Combate à praga do milho: a chegada da mariposa transgênica

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Os agricultores brasileiros poderão contar dentro de algum tempo com uma nova ferramenta para combater o que é considerada pelo agronegócio a principal praga da cultura do milho. A empresa Oxitec do Brasil prepara-se para fazer o lançamento comercial de uma mariposa geneticamente modificada a ser liberada nas plantações com a finalidade de combater a lagarta-do-cartucho (Spodoptera frugiperda). Presente em todas as regiões do país em que se cultiva milho, o inseto é responsável por perdas de até 50% em uma lavoura. A mariposa transgênica, chamada de Spodoptera do Bem, recebeu em 2021 a aprovação da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), a instância do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) responsável por recomendar ou não a liberação de organismos geneticamente modificados no Brasil.

“A Spodoptera do Bem é um produto seguro e eficaz”, afirma a geneticista Natalia Ferreira, diretora-geral da Oxitec do Brasil. “Estamos em uma fase de engajamento de agricultores, de conversa com distribuidores e continuamos com ensaios em fazendas para entendermos como esse produto se encaixa na rotina do produtor rural”, informa. O lançamento comercial, segundo a empresa, deve ocorrer nos próximos anos.

Spodoptera do Bem é o nome comercial das mariposas da linhagem geneticamente modificada OX5382G, desenvolvida pela empresa matriz no Reino Unido e testada em duas fazendas brasileiras – uma em Mato Grosso e outra em São Paulo. Spin-off da Universidade de Oxford criada em 2002, a Oxitec é hoje uma subsidiária da empresa norte-americana Third Security, com sede na Virgínia.

O Brasil é o primeiro e único país do mundo a liberar as mariposas transgênicas no campo. Elas são uma versão geneticamente modificada da própria lagarta-do-cartucho que ataca o milho e, em seu código genético, carregam dois genes diferentes, introduzidos em laboratório. Um deles, conhecido como tTAV, impede o desenvolvimento de fêmeas e faz com que, dos ovos da nova geração, só vinguem os machos, afetando drasticamente a reprodução do inseto.

“Nós aprimoramos em laboratório um gene que já está na Spodoptera e em outros insetos e aracnídeos, colocando um promotor [determinada sequência de DNA] que sinaliza para a célula produzir muito daquele gene”, afirmou Ferreira. “É como uma overdose. Como se eu, no meu corpo inteiro, em vez de produzir as células dos órgãos, passasse a produzir só colágeno, por exemplo”, diz. “O resultado é que não produziria mais sangue, saliva ou nada que garanta a minha vida; então morreria exatamente por falta dessas substâncias.”

O segundo gene inserido, DsRed2, é um marcador, derivado de uma espécie de coral marinho que produz uma proteína fluorescente e ajuda a distinguir os animais modificados dos insetos selvagens.

A técnica de combate à praga consiste em liberar machos geneticamente modificados no campo para copular com as fêmeas selvagens. Do cruzamento, vingam apenas lagartos machos, que, após a fase de pupa, viram mariposas portadoras do gene letal ou autolimitante no genoma, que mais uma vez matará as descendentes fêmeas. Dessa forma, em algumas gerações, segundo a empresa, a população do inseto diminuirá.

A tecnologia é a mesma utilizada no produto Aedes do Bem, vendido pela empresa no Brasil desde 2021, que busca reduzir a população de Aedes aegypti. Nesse caso, o objetivo é diminuir os casos de dengue e de outras doenças transmitidas pelo mosquito, como zika e chikungunya. Spodoptera modificada, duas versões de Aedes aegypti criadas pela Oxitec e o salmão da empresa canadense AquaBounty compõem o restrito grupo de animais transgênicos cuja venda já foi liberada no Brasil pela CTNBio.

Eduardo Cesar / Revista Pesquisa FAPESPAlém do milho, a mariposa pode se alimentar de cerca de 50 variedades de plantasEduardo Cesar / Revista Pesquisa FAPESP

A médica veterinária Maria Lúcia Zaidan Dagli, do Laboratório de Oncologia Experimental e Comparada da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo (FMVZ-USP) e membro da CTNBio, avalia como positiva a liberação no país da Spodoptera do Bem. Ela participou da decisão de aprovação da primeira versão de Aedes aegypti da Oxitec.

Para obter a liberação comercial, explica Dagli, é preciso que as quatro áreas setoriais da CTNBio que verificam o impacto do produto sobre a saúde humana, a saúde animal, os vegetais e o ambiente atestem a segurança do produto com base em dados e estudos apresentados pela companhia interessada. Após a liberação comercial do produto, há ainda um acompanhamento e a empresa deve enviar relatórios anuais à CTNBio ao longo de cinco anos.

“É o mesmo processo que ocorre com novos medicamentos liberados pelas respectivas agências regulatórias. Se algum problema for relatado, dependendo do que for, o produto pode ser suspenso”, salienta a pesquisadora. Ela ressalta que nunca ocorreu a suspensão de um produto aprovado pela CTNBio.

Como parte da estratégia dos produtores rurais de combate à lagarta-do-cartucho, há no mercado em torno de 200 produtos para controle químico do inseto, de acordo com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). No entanto, Spodoptera tem demonstrado resistência aos inseticidas convencionais. E ainda há a preocupação com os efeitos indesejados desses agrotóxicos sobre a saúde de organismos não alvos e ao ambiente.

Além dos inseticidas, há nove produtos para controle biológico registrados no país e outros quatro estão prestes a ser lançados. Desde a safra de 2008/2009, também se usa a tecnologia do milho transgênico – que expressa proteínas da bactéria Bacillus thuringienses (Bt) para matar as lagartas. Só que os insetos já mostram resistência à planta modificada.

“Quando utilizamos inseticidas ou plantas transgênicas para controle de uma praga, acabamos selecionando involuntariamente no campo indivíduos capazes de sobreviver a essas tecnologias”, explica o engenheiro-agrônomo Alberto Soares Corrêa, coordenador do Laboratório de Ecologia Molecular de Artrópodes da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da USP. “Uma única fêmea de Spodoptera frugiperda pode colocar até 1.500 ovos em seu ciclo de vida. Além disso, é uma espécie extremamente complexa de manejar devido a sua polifagia [habilidade de se alimentar em diferentes espécies de plantas] e capacidade de dispersão. Nativa do continente americano, recentemente ela se tornou uma praga cosmopolita com relatos de detecção em países da África, Ásia, Europa e Oceania”, informa Corrêa.

Para retardar a evolução da resistência ao milho transgênico, recomenda-se que o agricultor reserve uma parte da área — entre 10% e 20%, embora não haja consenso quanto a esses valores — para o cultivo de plantas convencionais, não transgênicas, o chamado refúgio. O objetivo dessa estratégia é que os insetos copulem com aqueles que não têm os alelos que conferem a resistência (alelos são as diferentes formas de um determinado gene). “O fato é que muitas vezes o produtor abre mão de plantar o refúgio e, com isso, a evolução da resistência é acelerada”, diz o pesquisador da Esalq.

De acordo com a Oxitec, Spodoptera frugiperda transgênica deverá ser um método bastante eficaz para controlar a resistência a plantações de milho Bt. “A Spodoptera do Bem nunca viu inseticida, nunca viu Bt na vida dela, é totalmente suscetível”, observa Ferreira. “Quando o macho transgênico vai a campo e acasala com uma fêmea e deixa um descendente macho, que herda a parte do genoma do pai que não tem resistência, recuperamos o efeito de todos os inseticidas, agrotóxicos e do próprio milho Bt. É uma tecnologia que vai ajudar a usar menos agrotóxicos e a resgatar ou estender a vida útil das sementes biotecnológicas.”

Produtora São Paulo / OxitecColaboradores da Oxitec em campo conduzindo o estudo-piloto da Spodoptera do BemProdutora São Paulo / Oxitec

Corrêa explica que o controle autocida, no qual um inseto modificado reduz a população de animais da mesma espécie por meio dos cruzamentos, é uma técnica antiga. “O exemplo clássico é o da mosca-da-bicheira [Cochliomyia hominivorax], erradicada dos Estados Unidos após a liberação de milhões de insetos estéreis a partir da década de 1950”, afirma.

A diferença importante é que, em vez de transgênicos, foram soltos no campo machos tornados estéreis pela irradiação de raios gama. A utilização de insetos transgênicos, contou ele, vem com o objetivo, pelo menos inicial, de superar algumas fragilidades desse método. “A exposição à radiação pode trazer vários malefícios a esses insetos, comprometendo características biológicos e comportamentais e afetando seu desempenho no campo. A ideia do inseto transgênico é ter indivíduos com melhor desempenho e capacidade de competir com os machos selvagens, acasalar com as fêmeas e, assim, não deixar descendentes, reduzindo a população da espécie-alvo da tecnologia.”

Corrêa prefere não fazer previsões sobre os riscos e as possíveis consequências ecológicas da liberação de um inseto transgênico na natureza. “Não temos dados científicos disponíveis na literatura para responder às principais perguntas. Isso nunca foi feito em larga escala”, afirma o pesquisador. “No caso de Spodoptera frugiperda, se a CTNBio aprovou, acredito que julgaram ter a mínima segurança para a tecnologia ser aplicada.”

De acordo com ele, os mesmos questionamentos surgiram com as plantas transgênicas. “Hoje sabemos que elas têm elevada segurança. Tanto é que o uso delas tem sido ampliado em várias regiões do mundo. Com animais, contudo, há uma diferença grande nas questões reprodutivas e bioquímicas e na estrutura do genoma. Não podemos simplesmente falar: com planta transgênica funcionou, com animal transgênico vai funcionar.”

O biólogo José Maria Gusman Ferraz, pesquisador convidado do Laboratório de Engenharia Ecológica da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), estudou Spodoptera frugiperda durante seu doutorado. Para ele, a nova tecnologia pode ser um instrumento a mais no combate à praga. Pondera, contudo, que deverá ser pouco eficiente, uma vez que o inseto adulto tem elevada capacidade de deslocamento e o milho é plantado em grandes áreas abertas. “O histórico desse tipo de tecnologia é de que funciona bem apenas em áreas insulares, ou seja, com característica de ilhas”, diz.

Ferraz também gostaria de ver mais dados sobre possíveis danos aos parasitoides – os inimigos naturais da mariposa – antes da liberação e sobre os riscos de o material genético transgênico permanecer no ambiente. “As novas tecnologias podem funcionar em um espaço de tempo curto, mas também podem causar efeitos negativos e, em seguida, deixar de funcionar”, opina. “O princípio básico da vida é a diversidade e, quando eu reduzo essa diversidade, o sistema fica frágil.”

Uma vantagem dos organismos geneticamente modificados (OGM) em relação aos irradiados são a praticidade e o custo, explica a bioquímica Margareth Capurro, do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, coordenadora técnica de um estudo na Bahia sobre Aedes transgênico. Segundo ela, 44 países estão se preparando para usar a liberação de machos estéreis para o controle de população de insetos, embora nenhum deles adote técnicas de produção de OGM.

“Para o macho estéril, basta montar uma biofábrica e manter o custo de produção; o transgênico tem que pagar para a empresa que o fabrica. O transgênico, entretanto, facilita a vida, porque eliminamos a necessidade de um equipamento que custa entre US$ 100 mil e US$ 200 mil. Como vai ter um irradiador em cada estado do Brasil?”, questiona. “Não é viável. A logística do macho estéril, no caso de Aedes aegypti, exige que se faça a produção do inseto perto do irradiador e ele tem de ser transportado e liberado em até 24 horas.”

Uma distinção entre a mosca-da-bicheira, erradicada dos Estados Unidos no século passado, e Spodoptera frugiperda é que a primeira é monogâmica, ou seja, a fêmea copula uma única vez com apenas um macho. Já a segunda pode fazer múltiplas cópulas. E, diferentemente de Aedes aegypti, que é um animal exótico, proveniente da região do Egito, a mariposa que ataca o milho é nativa do continente americano. Além de se hospedar na espiga, Spodoptera também causa problemas a outras culturas importantes, como algodão, soja, trigo, arroz e feijão. Pode se alimentar de cerca de 50 variedades de plantas de mais de 20 famílias botânicas, segundo dados da Embrapa.

Para ocorrer a erradicação do inseto, no entanto, seria preciso uma política pública que pensasse uma ação em todo o território nacional e ainda nos países vizinhos do continente americano. “O Brasil é uma nação continental com uma fronteira terrestre gigantesca. Temos problemas em unir os órgãos governamentais, empresas e produtores para implementar estratégias de monitoramento e controle de pragas” pondera Corrêa. “Erradicar o inseto no Brasil é praticamente impossível. Creio que a empresa não tem isso como objetivo.”

Artigo científico
REAVEY, C. E. et al. Self-limiting fall armyworm: A new approach in development for sustainable crop protection and resistance management. BMC Biotechnology. 27 jan. 2022.

Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.

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