Na pequena carcaça do Aedes aegypti prospera uma microbioma peculiar que pode aumentar a capacidade de o mosquito carregar certos vírus e transmiti-los ao homem e a outros animais. Segundo um trabalho publicado em janeiro na revista científica Nature Microbiology, a chance de o vírus da dengue estar presente em Aedes aegypti é três vezes maior se os mosquitos estiverem infectados de forma simultânea por dois vírus específicos de insetos – o Phasi Charoen-like (PCLV) e o Humaita Tubiacanga (HTV).
A carga do vírus da dengue nos mosquitos infectados por ambos os vírus de insetos é, em média, cinco vezes maior do que nos A. aegypti sem o PCLV e o HTV, que não são transmitidos a animais vertebrados. O aumento de carga acelera o ciclo de replicação do vírus da dengue nos mosquitos, que passam a transmitir mais rapidamente a doença e elevam o risco de aparecimento de surtos da moléstia em seres humanos.
“Vírus formados pela molécula de RNA, como o PCLV e o HTV, normalmente competem entre si pelos recursos dos insetos que infectam, mas observamos o efeito contrário no A. aegypti”, comenta o biólogo João Trindade Marques, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), coordenador da equipe que fez o trabalho. Os dados do estudo indicam que, nessa espécie de mosquito, parece haver uma associação positiva entre esses dois vírus específicos de insetos e os vírus que causam dengue e zika.
A pesquisa teve início com a análise dos tipos de vírus de RNA encontrados em 815 mosquitos adultos coletados em seis países de quatro continentes: Brasil, Suriname, França, Gabão, Senegal e Singapura. As amostras vieram de A. aegypti e de Aedes albopictus, espécies cujas fêmeas transmitem arboviroses, como dengue, zika e chikungunya. A primeira é mais predominante em ambientes urbanos; a segunda, em áreas rurais e de transição entre o campo e a cidade. No total, foram identificados 12 vírus, cinco completamente novos e sete já conhecidos, no material genético do A. aegypti.
Os dois vírus encontrados com mais frequência na análise, o PCLV e HTV, são exclusivos de A. aegypti e estavam presentes em mais da metade das amostras. O HTV foi descoberto em 2015 no Brasil. As cargas virais mais elevadas de ambos os vírus vinham de mosquitos coletados em localidades com alta incidência de dengue e zika na América do Sul (Brasil e Suriname) e na Ásia (Singapura). Nas Américas, o Brasil foi o país com mais casos de dengue e zika em 2022: 2,3 milhões e 34,1 mil, respectivamente, segundo dados da Organização Pan-americana da Saúde (Opas). Essa coincidência levou a equipe do estudo a formular uma hipótese: a presença do PCLV e do HTV poderia favorecer a transmissão de arboviroses pelas fêmeas do mosquito.
Para testar essa ideia, os pesquisadores fizeram uma nova análise em amostras de RNA de 515 exemplares de A. aegypti e 24 de A. albopictus, coletados entre 2010 e 2011 na cidade mineira de Caratinga. Os resultados reforçaram a hipótese. O PCLV e o HTV foram identificados somente em amostras de A. aegypti. O primeiro estava presente em 61% das amostras e o segundo em 85%. “Os mosquitos com ambos os vírus tinham em torno de três vezes mais chance de estarem infectados com dengue do que aqueles que não carregavam o PCLV e o HTV”, afirma o bioinformata Roenick Olmo, primeiro autor do artigo, que defendeu doutorado na UFMG sob orientação de Marques e atualmente faz estágio de pós-doutorado na Universidade de Estrasburgo, na França. “Em um surto de dengue, geralmente de 2% a 3% dos mosquitos estão infectados com o vírus da doença. Mas, no material de Caratinga, 5% dos A. aegypti estavam com dengue, ou seja, uma porcentagem acima do normal.”
A etapa seguinte da pesquisa levou a equipe da UFMG a produzir evidências laboratoriais de que a coinfecção por PCLV e HTV afeta a replicação dos vírus da dengue e da zika no interior do mosquito. Linhagens diferentes de fêmeas de A. aegypti foram geradas em laboratório a partir de uma população de mosquitos da natureza – uma com a dupla infecção por PCLV e HTV, outra sem ambos os vírus – e foram postas para se alimentar do sangue de camundongos infectados com os vírus da dengue e da zika. Em comparação ao grupo que não foi infectado pelo PCLV e HTV, os mosquitos com a dupla infecção apresentaram cargas virais de dengue e de zika cerca de cinco vezes maior.
O trabalho ainda constatou que a presença do PCLV e do HTV no mosquito encurta entre um e cinco dias o período de incubação extrínseco do vírus da zika – tempo necessário para que o inseto se torne capaz de infectar o homem ou um animal com o patógeno. Segundo modelos matemáticos, a diminuição desse período em dois dias leva a um número de infecções cinco vezes maior na população humana, um fator de risco para a eclosão de surtos.
Para o bioquímico José Henrique Oliveira, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que não participou do estudo, o trabalho dos colegas da UFMG indica a importância de se determinar a prevalência da dupla infecção pelo vírus PCLV e HTV nas populações de A. aegypti do país. “Dessa forma, poderíamos antever as regiões com maior probabilidade de apresentar novos surtos de arboviroses e intensificar a vigilância para reduzir o contingente de mosquitos vetores”, diz Oliveira.
O próximo passo dos estudos da equipe da UFMG é tentar identificar os mecanismos que levam ao estabelecimento da dupla infecção pelo PCLV e HTV nos mosquitos, principalmente os genes envolvidos nesse processo. Assim, talvez seja possível descobrir por que a presença de ambos os vírus torna o A. aegypti mais competente para transmitir dengue e zika para o homem. Um primeiro achado nesse sentido já foi obtido. A equipe de Marques constatou que o padrão de expressão (ativação) de uma das proteínas responsáveis pelo empacotamento do material genético do A. aegypti no núcleo de suas células, a histona H4, é alterado em mosquitos com dengue que apresentam a dupla infecção por PCLV e HTV. Os dados do grupo sugerem que, quando a histona H4 é menos expressa, o vírus da dengue parece se replicar mais lentamente nos mosquitos. Em estudos futuros, a histona H4 pode ser um alvo a ser testado como uma forma de modulação da capacidade do mosquito de transmitir dengue e outras doenças.