No Natal de 2021, o biólogo Carlos Eduardo Fragoso ganhou um presente inusitado da mãe: um álbum de fotografias. A diferença é que a coletânea não reunia momentos em família nem de viagens, como se costumava fazer antes da era digital, mas sim imagens do pesquisador em seu ambiente de trabalho, o Pantanal, com o seu objeto de pesquisa, as onças-pintadas. Toda vez que ele e sua equipe se aproximavam de uma onça para coletar dados para pesquisa, ele mandava uma foto para a mãe, Bernadete, por WhatsApp contando detalhes como o tamanho do animal, o nome que a equipe lhe dera ou alguma característica interessante. Atrás de cada foto, a mãe do pesquisador incluiu essas informações.
Desde 2015, Fragoso trabalha com monitoramento de onças-pintadas no Pantanal. Em estudo publicado recentemente, ele e sua equipe de 11 pesquisadores das organizações não governamentais Onçafari e Panthera descrevem como conseguiram avaliar os hábitos reprodutivos de 180 indivíduos da espécie que vivem livremente na fazenda Caiman Pantanal, em Mato Grosso do Sul, uma área de 53 mil hectares (530 km2) que inclui 56 quilômetros quadrados de área de preservação legal.
A gestação de uma onça dura, em média, três meses. A idade reprodutiva das fêmeas começa aos 2,5 anos e pode ir até os 13 anos – elas vivem cerca de 15 e se reproduzem a cada dois anos. Ao longo da vida, têm em média oito filhotes. A maioria (65,7%) dos nascimentos registrados pelo estudo foi de apenas um filhote, um quarto dos casos foi de gêmeos e o restante de trigêmeos, conforme artigo publicado em janeiro na revista Journal of Mammalogy. Com cerca de 1,5 ano de vida, os filhotes se tornam independentes das mães.
Os resultados animaram Fragoso e sua equipe. “São números relevantes, conseguimos detectar certo crescimento da população na região porque o ambiente é saudável e elas podem continuar sobrevivendo por muitos anos ali”, afirma o coordenador científico do Onçafari. “As fêmeas têm sido muito bem-sucedidas em criar os filhotes até a independência deles.”
O sucesso das onças do Pantanal se deve muito à quantidade de presas às quais elas têm acesso. “Esses felinos têm uma vida muito boa e tranquila aqui”, diz Fragoso. Os dados que permitiram as descobertas foram coletados por quase uma década com a ajuda da tecnologia: câmeras com sensores de movimento para observar os animais – são as chamadas armadilhas fotográficas. Ao detectar a presença do bicho, a câmera começa a registrar. Colares com equipamento de localização por GPS ajudam os cientistas a saber exatamente onde as onças estão, por onde andam e a identificar as fêmeas grávidas, já que seus deslocamentos diminuem consideravelmente durante a gestação.
Para colocar os colares, outro tipo de armadilha é usado: o laço. Como sugere o nome, trata-se de um laço conectado a um transmissor, armado no meio da trilha e camuflado. Quando a onça pisa na armadilha, sua pata fica presa e a equipe recebe um sinal de que houve captura e, então, corre até o local e é disparado um dardo anestésico que põe o animal para dormir.
Com o tranquilizante aplicado por um veterinário, eles têm entre 40 minutos e uma hora para tirar medidas, como peso e tamanho, coletar material para análise em laboratório, como pelos, saliva, sangue, e colocar o colar com o localizador GPS, que tem uma espécie de timer – cai sozinho por volta de 1,5 ano depois. O colar é colocado apenas em animais adultos, que não vão crescer mais, e o anestésico não é prejudicial para as fêmeas grávidas, de acordo com os pesquisadores.
“Na hora, fazemos o que é estritamente necessário com o animal, mas ter o bicho ali nas mãos é algo indescritível”, diz Fragoso. Para os pesquisadores, cada onça é única e, por isso, recebe um nome: Esperança, Flor, Troncha (por causa da orelha caída), Ipê, Aroeira, Fera (e seu filhote, Ferinha). A favorita de Fragoso é Natureza. “Foi a primeira que vi em vida livre quando cheguei no Pantanal”, relembra. Desde que o biólogo a acompanha, ela já teve 10 filhotes.
Os pesquisadores precisam de mais atenção e rapidez para entrar na toca das mães, o que só é possível por causa dos colares. As fêmeas saem muito pouco de perto dos filhotes recém-nascidos, mas, quando a armadilha fotográfica captura a imagem de uma delas longe da ninhada, o time se divide para contar o número de crias – tarefa importante porque permite saber quantos filhotes de fato nasceram, não apenas os que sobrevivem e emergem da toca quando já estão mais independentes. Metade do grupo segue a mãe e a outra metade visita os filhotes. “As equipes se comunicam por rádio e têm que ser muito rápidas”, conta Fragoso, que ressalta só usar o método quando a toca está acessível, para evitar alterações que exponham os filhotes a riscos. “Antes só víamos os filhotes já com 2, 3 meses de idade pelas câmeras, mas não sabíamos quantos de fato tinham nascido e sobrevivido.” Uma das próximas missões é medir a taxa de mortalidade infantil das onças.
Além de experiência, para fazer parte de uma equipe como a de Fragoso, é necessário respeitar os protocolos de segurança. Só se pode chegar perto de uma onça acordada dentro de um carro. Na região onde o Onçafari atua, elas já estão acostumadas ao barulho dos veículos e não alteram seu comportamento natural. Além de abrigar pesquisadores, a Caiman também recebe turistas. Até hoje, o biólogo nunca presenciou nenhum acidente grave, mesmo lidando com as maiores onças do mundo. “As onças não enxergam os seres humanos como presas”, afirma o biólogo Alan Eduardo de Barros, estudante de doutorado na Universidade de São Paulo (USP), que estuda as consequências dos incêndios sobre a população de onças pantaneiras.
No Pantanal, machos adultos chegam a pesar mais de 140 quilogramas (kg) e as fêmeas mais de 80 kg. Adultos da Caatinga são mais leves, com machos adultos pesando menos de 50 kg. Nesse sentido, Barros, que não tem relação com a Onçafari, avalia que a equipe de Fragoso foi privilegiada por desenvolver o estudo no bioma. “Existe uma facilidade para observar bichos de grande porte e aves no Pantanal”, observa.
Isso porque o Pantanal é um bioma conservado e com alta densidade de onças-pintadas, destaca o veterinário Ronaldo Morato, coordenador do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Carnívoros do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (Cenap/ICMBio). “Elas têm alguns comportamentos mais relaxados ali, a competição é menor por terem mais alimento disponível”, avalia. “Ter essa referência pode nos permitir fazer previsões para regiões em que há menos possibilidade de coletar informações”, aponta.
Outra vantagem foi poder observar onças em uma propriedade que também tem investimento na atividade turística, à qual os animais estão habituados: entre os passeios oferecidos na região, está a experiência de observar onças-pintadas. É essencial que os interesses do turismo sejam aliados à pesquisa científica e à preservação da espécie, diz Barros. “O potencial é positivo se for feito da maneira correta”, avalia.
O avanço da tecnologia foi mais um fator que permitiu uma observação tão intensa do comportamento desses animais. Nos anos 1970, pesquisadores utilizavam colares que emitiam sinais de rádio em frequência muito alta (VHF) – e não com GPS. Para captar os sinais, Peter Crawshaw (1952-2021), brasileiro pioneiro no estudo de onças-pintadas, sobrevoava o Pantanal em ultraleves. “Antigamente, um estudo muito bom conseguia cerca de 60 pontos de localização em dois, três anos”, lembra Morato, um dos primeiros a usar GPS para monitorar onças-pintadas. “Hoje, coletamos 60 localizações em três dias, então a informação aumentou muito em quantidade e tornou-se mais precisa.”
O avanço dos computadores também permite que os pesquisadores analisem o grande volume de dados coletados. “Existem métodos para esmiuçar essas informações de maneira muito mais detalhada”, comenta Morato. “Podemos fazer associações mais complexas que nos ajudam a entender melhor a história natural das espécies.”
Reproduzir o estudo da equipe de Fragoso em outros biomas brasileiros pode ser um desafio, principalmente naqueles onde as onças estão ameaçadas de extinção, como a Mata Atlântica e o Cerrado, ou fora do país. A expectativa é de que os dados coletados no Pantanal possam ajudar em avaliações da viabilidade de populações e no planejamento para reintrodução da espécie. Morato vê as onças-pintadas como um símbolo para engajar a sociedade na preservação do meio ambiente e da biodiversidade.