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Como o cérebro aprende a contar o tempo

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Mesmo sem um relógio por perto, não é difícil calcular com precisão razoável a duração de um segundo. É o tempo aproximado de uma batida do coração ou de uma piscada mais lenta dos olhos. Intervalos tão curtos costumam passar despercebidos no dia a dia, mas são cruciais para a sobrevivência.

Podem representar a diferença entre capturar ou não uma presa ou atravessar uma rua em segurança. Se são tão importantes, como o cérebro aprende a cronometrá-los? Em estudos realizados com ratos, pesquisadores da Universidade Federal do ABC (UFABC) estão ajudando a decifrar como diferentes regiões cerebrais atuam para codificar a passagem de períodos tão curtos de tempo.

Os resultados mais recentes, publicados em setembro de 2022 na revista eLife, revelaram algo inesperado: contabilizar intervalos breves não é uma atividade estática, realizada de modo contínuo por uma única área do cérebro, como sugeriam trabalhos anteriores. Em vez disso, a equipe coordenada pelo neurocientista Marcelo Bussotti Reyes verificou que ao menos duas regiões parecem agir de modo coordenado e consecutivo na tarefa.

Uma delas é o córtex pré-frontal medial. Associado ao planejamento de ações, ao controle de impulsos e à identificação de regras, essa camada mais superficial situada na parte anterior da cabeça atua nos estágios iniciais, aprendendo a identificar a duração do intervalo. À medida que esse conhecimento se consolida, no entanto, a cronometragem passa a ser executada por uma região mais profunda: o núcleo estriado dorsal, responsável pela execução automática de tarefas aprendidas.

No Centro de Matemática, Computação e Cognição da UFABC, Reyes e seus colaboradores observaram a migração da atividade de uma área cerebral para outra ao registrar a atividade dos neurônios de ratos durante o aprendizado de uma tarefa simples. No interior de uma caixa de acrílico, os roedores tinham de colocar o focinho em um pequeno orifício contendo um sensor infravermelho e mantê-lo ali por ao menos 1,5 segundo (s). Se o animal retirasse o focinho antes do prazo, não ganhava nada. No entanto, quando aguardava ao menos o tempo predeterminado pelos pesquisadores, ele recebia uma recompensa prazerosa: gotas de uma solução de água com açúcar.

Nas primeiras tentativas, os roedores não se saíam bem. Tiravam o focinho antes da hora e ficavam sem a recompensa ou esperavam tempo demais e perdiam oportunidade de tomar água com açúcar mais vezes. Só de vez em quando acertavam. Cerca de uma hora após o início do treinamento, porém, eles já haviam aprendido o quanto era preciso aguardar e se tornado hábeis ganhadores de recompensa

Evolução tão rápida no desempenho da tarefa deu aos pesquisadores a oportunidade rara de investigar como as duas regiões cerebrais sabidamente ligadas à percepção do tempo atuavam em três estágios do teste: antes, durante e depois do aprendizado. Embora muitos experimentos de percepção da passagem do tempo sejam feitos com animais, quase nunca se consegue acompanhar a atividade cerebral em todos esses estágios.

O principal empecilho é técnico. O aprimoramento na execução das tarefas costuma levar dias e, durante esse tempo, os eletrodos implantados no cérebro podem mudar de posição ou perder sensibilidade por causa da cicatriz que se forma ao redor. “Isso nos impedia de saber se estávamos registrando sempre a mesma população de neurônios”, explica Reyes. “No experimento atual, em que os animais aprendem em menos de uma hora, temos segurança de que estamos acompanhando a todo momento a atividade dos mesmos neurônios”, afirma.

O que acontece no cérebro durante a aprendizagem da tarefa? Na fase inicial, antes de os animais se tornarem experts, a ativação ocorre apenas no córtex pré-frontal. À medida que se aproxima o momento em que podem retirar o focinho do orifício e ganhar o prêmio adocicado, os neurônios dessa região cerebral passam a ser ativados um número maior de vezes por segundo.

Os neurocientistas chamam esse padrão de “sinal em rampa”, por causa da reta inclinada que surge no gráfico que mostra o número de vezes em que cada população de neurônio é ativada por intervalo de tempo. “Para nossa surpresa, o sinal em rampa estava presente no córtex pré-frontal desde as primeiras tentativas, antes de o animal aprender a aguardar aquele tempo específico”, conta a engenheira biomédica Gabriela Chiuffa Tunes, uma das autoras dos experimentos, realizados no doutorado feito sob a orientação de Reyes.

À medida que os roedores ganhavam experiência, o sinal deixava de ser observado no córtex pré-frontal e passava a ser identificado no núcleo estriado. “Inicialmente pensamos que fosse consequência da perda de qualidade do registro”, lembra Reyes. Também era possível que o efeito observado fosse consequência do acaso.

A confirmação de que a codificação da informação sobre o tempo havia migrado de uma região para outra veio com outro experimento. Tunes e o também engenheiro biomédico Eliezyer Fermino de Oliveira injetaram, ora no córtex pré-frontal, ora no estriado, uma dose de muscimol, um composto extraído de um cogumelo que reduz temporariamente a atividade dos neurônios.

Quando o córtex era inativado no início dos experimentos, os animais não conseguiam aprender a aguardar 1,5 s e se saíam mal na tarefa. Já se o muscimol era aplicado no córtex pré-frontal depois que os roedores estavam experientes, eles continuavam experts em obter a recompensa. A aplicação de muscimol no estriado depois que os ratos já sabiam quanto tempo aguardar, no entanto, revertia o efeito do aprendizado e eles passavam a errar o momento de tirar o focinho do orifício.

“Esses experimentos são surpreendentes porque os autores capturam o aprendizado muito precoce e mostram que, embora estejam diretamente conectados, o córtex frontal e o núcleo estriado desempenham papéis diferentes”, afirmou o neurologista norte-americano Nandakumar Narayanan, da Universidade de Iowa, nos Estados Unidos, que não participou desse trabalho, a Pesquisa FAPESP.

“O trabalho é interessante por sugerir que, no início do aprendizado, a informação sobre o tempo é codificada por neurônios de uma área executiva altamente evoluída, o córtex pré-frontal, e, após o aprendizado, pelos neurônios de uma área classicamente associada a comportamentos automáticos e à formação de hábitos”, afirma o neurocientista Adriano Tort, do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). “É uma descoberta importante que precisa ser corroborada por outros grupos. Como o número de animais acompanhados foi pequeno, provavelmente devido à complexidade da pesquisa, as análises estatísticas são mais limitadas”, explica o neurocientista.

“Os resultados atuais trazem evidências de que a contagem do tempo não é realizada continuamente pela mesma região do cérebro, ao menos nos intervalos mais curtos”, afirma o pesquisador da UFABC. Eles reforçam uma ideia surgida nas últimas décadas na neurociência de que, para intervalos considerados curtos, o registro da passagem do tempo ocorre de modo difuso, feito por diferentes regiões do cérebro. “Nossa hipótese agora é de que o córtex pré-frontal ‘treine’ outras regiões e depois saia de cena.”

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