Há cerca de 10 mil anos, no chamado período Neolítico, marcado pelo surgimento dos esboços das primeiras cidades e início do processo de domesticação de plantas para a nascente agricultura, o homem provavelmente passou a conviver mais intimamente com um elemento constituinte dessa nova sociedade: as bebidas alcoólicas fermentadas (os destilados apareceriam milênios mais tarde).
Em 2004, a equipe do arqueólogo norte-americano Patrick McGovern, da Universidade Estadual da Pensilvânia, detectou por métodos químicos resíduos de um fermentado elaborado a partir de uma mistura de arroz, mel e frutas, que poderia modernamente ser definido como algo entre um vinho e um saquê, em pedaços de vasos de 9 mil anos atrás encontrados no sítio arqueológico de Jiahu, no centro-leste da China. Esse é o registro mais antigo conhecido da produção de uma bebida alcoólica.
Em sua longa história, o álcool se tornou a droga psicoativa mais difundida nas sociedades. Ligadas ao convívio social, a rituais metafísicos ou a cerimônias religiosas, as bebidas estiveram presentes em todas as civilizações do passado e hoje permanecem aceitas na maioria dos países, com exceção de pouco mais de uma dezena de nações islâmicas. Na Mesopotâmia, há cerca de 6 mil anos, os sumérios já consumiam vinho e cerveja, hábito imortalizado em desenhos feitos em tabletes de pedra. No Antigo Egito, a cerveja era a bebida do povo e o vinho da elite.
A Antiga Grécia e depois Roma, com sua enorme influência cultural, difundiram e legitimaram o hábito de beber, sobretudo vinho, no Ocidente. O termo de origem grega simpósio, hoje usado para designar encontros intelectuais com a finalidade de discutir algum tema, significa originalmente beber junto – e era isso que homens influentes faziam à mesa após festivas refeições em casas abastadas. O cristianismo também teve um papel importante na disseminação do vinho. Na Bíblia, a planta mais citada é a videira e o primeiro milagre atribuído a Jesus é a transformação da água em vinho, bebida que, posteriormente, seria adotada como o sangue de Cristo na cerimônia da eucaristia.
Essa dimensão espiritual e ligada a festividades está presente nas mais diversas culturas. No livro Selvagens bebedeiras: Álcool, embriaguez e contatos culturais no Brasil colonial (séculos XVI-XVII) (Alameda Editorial, 2011), o historiador João Azevedo Fernandes (1963-2014), que foi professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), fala, por exemplo, da produção do cauim, um fermentado à base de mandioca feito exclusivamente pelas mulheres de povos indígenas do Brasil. “Os cauins eram fundamentais para as cerimônias que marcavam alguns dos momentos mais importantes do ciclo de vida dos Tupinambá, como os casamentos e funerais”, escreveu Azevedo na sua tese de doutorado em que se baseia a obra.
Hoje, o consumo de bebidas alcoólicas não está associado aos árabes, provavelmente devido à grande penetração, entre esses povos, da religião islâmica, que, a partir do século VII, baseada no livro sagrado do Alcorão, passou a condenar seu consumo. Mas o próprio termo álcool é de origem árabe, a exemplo da palavra alambique. Não por acaso, é atribuída aos árabes a introdução na Europa medieval, por volta do século X, do processo de destilação, que consiste na separação dos constituintes de uma mistura líquida por meio de sua vaporização parcial. Essa operação é a base da elaboração de uma categoria de bebidas, a dos destilados, que engloba o conhaque, o uísque, o gim e um sem-número de aguardentes.
Embora embriaguez, comportamentos antissociais e eventuais malefícios físicos tenham sido associados à ingestão excessiva de líquidos fermentados e destilados em diferentes momentos da história e sociedades, o álcool, em suas variadas formas, foi um companheiro da prática médica desde a Antiguidade. Vinhos, cervejas e destilados foram empregados como tentativas de amenizar os sofrimentos do corpo, ora como se fosse um remédio propriamente dito, ora como o veículo no qual se misturava um tratamento, ou, no caso das bebidas mais potentes, fazendo o papel dos modernos anestésicos. Até o século XVIII, era mais seguro beber vinho, cuja fermentação matava parte dos germes em seu líquido, do que a água que se conseguia nas cidades.
Para o historiador Henrique Soares Carneiro, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), o álcool e as drogas em geral são um dos elementos fundadores da civilização humana por seu valor econômico, social e cultural. “Desde o fim do século XIX, a história das drogas é, antes de tudo, a história de suas regulações, de como elas são autorizadas a circular nas sociedades e das políticas de repressão, incitações e tolerância a seu uso”, comenta Carneiro, coordenador do Laboratório de Estudos Históricos de Drogas e Alimentação da FFLCH.
Mais do que possíveis danos à saúde, a proibição do uso de certas substâncias na sociedade industrial, como conta o historiador no livro Drogas – A história do proibicionismo (Autonomia Literária, 2018), se dá por razões religiosas, econômicas (não afetar a produção de bens) ou simplesmente por controle do Estado. Nasce assim o conceito moderno de três tipos de drogas: as ilícitas, as lícitas medicinais e as também legais de uso recreativo, como o tabaco e as bebidas alcoólicas.
Embora por vezes resvalem em argumentos econômicos ou morais, as discussões atuais sobre quanto um bebedor moderado poderia consumir de álcool se insere, em grande medida, dentro do debate científico a respeito de (novos) efeitos deletérios associados a essa substância intoxicante. Mas sempre há quem prefira também colocar nessa equação argumentos socioculturais, além da questão física. “Não sou médico, mas, pelo que li, aceito que o álcool é prejudicial ao ser humano no sentido fisiológico.
Porém, se olharmos para as pessoas de forma holística, pode ser que os efeitos de seu consumo moderado sejam benéficos em geral – ou seja, que seu dano fisiológico seja equilibrado ou superado pelos benefícios emocionais, uma sensação de bem-estar, de relações sociais lubrificadas, ou desfrutar de ocasiões sociais”, diz, em entrevista a Pesquisa FAPESP, o historiador neozelandês Rod Phillips, da Universidade Carleton, no Canadá, autor de livros sobre a história do álcool e do vinho. “É verdade que não precisamos do álcool para obter esses benefícios, mas nos acostumamos culturalmente a usá-lo para esses fins.”
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