O Brasil lidera uma expedição internacional e interdisciplinar que parte amanhã, dia 22 de novembro de 2024, para uma viagem de dois meses ao redor de toda a Antártica. Um total de 61 pesquisadores de sete países — Brasil, Chile, China, Índia, Peru e Rússia — percorrerão aproximadamente 20 mil quilômetros para coletar dados atmosféricos, geofísicos, glaciológicos, biológicos e oceanográficos inéditos e avaliar como os ecossistemas antárticos estão respondendo às rápidas e preocupantes mudanças climáticas pelas quais o planeta vem passando.
Circum-navegações ao redor da Antártica são realizadas desde James Cook, no final do século 18. Mas a nossa Expedição Internacional de Circum-Navegação Costeira Antártica traz aspectos diferentes. Além de ser realizada em um momento crítico para o planeta, em razão das mudanças climáticas causadas pelo homem e cada vez mais intensas, ela é inédita ao tentar chegar o mais perto possível da costa em diferentes pontos que ainda não foram estudados pela ciência.
Outras viagens da mesma natureza realizaram a circum-navegação a uma distância média de 1 a 2 mil quilômetros da costa. Em nossa expedição, o navio quebra-gelo científico Akademik Tryoshnikov, do Instituto de Pesquisa Ártica e Antártica (de São Petersburgo, na Rússia), no qual viajaremos, pode chegar a 1 quilômetro da costa em alguns pontos. Trata-se de um ambiente mais agressivo, em que os organismos estão adaptados a condições extremas muito mais sazonais e agressivas do que o que estamos acostumados a estudar.
Ao liderar uma circum-navegação desse porte — em razão do nosso histórico em anos do Programa Antártico Brasileiro (PROANTAR), o Brasil se coloca entre os principais países a trabalhar com as questões de mudanças climáticas e seus efeitos que impactam o Brasil, a América Latina e o mundo.
Por que estudar a Antártica? Basicamente, por duas razões. A primeira delas é que os ambientes polares — tanto o Ártico quanto a Antártica — são muito mais sensíveis às mudanças ambientais em geral, quando comparado com outros ecossistemas. Existe uma série de fenômenos que intensificam e aceleram os processos climáticos nessas regiões. Então, podemos dizer que elas são como sentinelas climáticos, ou “um canário dentro da mina”. Elas nos dão um aviso do que está por vir relacionado a efeitos climáticos extremos.
Na periferia da Antártica, por exemplo, a temperatura já aumentou o dobro da média global. Na periferia do Ártico, existem lugares em que o aumento médio de temperatura foi até três vezes maior do que a média do planeta para os últimos 160 anos. São, portanto, sinais que precisamos estudar.
A outra questão é que não se trata exclusivamente da Antártica. Ela não está isolada do resto do mundo e o que acontece lá tem implicações no resto do planeta. No Brasil, sempre achamos que as mudanças do clima afetam apenas a floresta amazônica. Mas a Antártica é tão importante quanto a Amazônia para o sistema ambiental global. As mudanças que ocorrem lá afetam inclusive o dia a dia do brasileiro.
Além disso, as regiões polares representam os “refrigeradores” do planeta, as correntes atmosféricas e marinhas resultam do transporte de energia dos trópicos para as regiões polares. As regiões são parte essencial do nosso sistema climático.
O descongelamento do mar congelado do Ártico já é inevitável, não tem mais volta. Então, precisamos prestar mais atenção à Antártica e entender melhor o que está acontecendo nela, pois o derretimento do Ártico pode ser o futuro de parte da Antártica. E é exatamente o estudo da Antártica que nos permite entender as mudanças climáticas e nos ajuda a melhorar a nossa previsão climática, os cenários de mudança do clima para as próximas décadas e como mitigar seus impactos.
Nessa circum-navegação, temos uma ampla área de investigação, mas duas grandes questões norteiam nosso trabalho.
A primeira é a estabilidade dinâmica do manto de gelo da Antártica. Basicamente, o manto de gelo é uma camada com uma espessura média de dois quilômetros, que está em cima do continente. Ele flui do continente para a costa e, ao chegar na costa, flutua e forma o que chamamos de plataformas de gelo.
Essas plataformas podem ter centenas de quilômetros e avançam do continente em direção ao mar. Existe a hipótese de que algumas delas possam estar instáveis e possam desaparecer. Se isso acontecer, parte do manto de gelo poderá deslizar mais rapidamente para dentro do oceano. Isso afetaria todo o planeta, pois um alto volume de água potável (“doce”) iria interferir na salinidade e temperatura do Oceano Austral e todos os demais oceanos no seu entorno. Mais importante, aumentaria mais ainda o nível médio dos mares.
Se consideramos, nos cenários de mudanças do clima, apenas o derretimento das geleiras e a expansão térmica do mar, até 2100 podemos ter um aumento do nível do mar de cerca de 1,20 metros. Uma desestabilização do manto de gelo, no entanto, pode alterar esse cenário e levar o nível dos oceanos a um aumento de até seis ou sete metros em 300 anos, o que pode ser catastrófico. Ilhas e cidades litorâneas irão submergir e desaparecer, o que causará grande impacto global, como grandes migrações, mortes, aumento e dispersão de doenças.
A partir dessa hipótese, vamos fazer uma série de levantamentos geofísicos e de morfologia do fundo oceânico na frente das geleiras que têm indicações de serem mais instáveis, para entender melhor esse processo e suas integridades.
A outra grande questão a ser estudada na nossa expedição diz respeito às rápidas mudanças ambientais que o Oceano Austral vem sofrendo. Ele está se tornando mais ácido, mais quente e menos salino, e essas três mudanças têm implicações para os organismos vivos que o habitam.
Nossos pesquisadores da oceanografia, biologia e de outras áreas coletarão uma série de amostras de micro-organismos e farão observação de aves e cetáceos para tentar entender como esses organismos estão se adaptando (ou não) a essas mudanças.
Uma equipe formada por pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Universidade de Brasília (UnB) e Universidade de Viçosa (UFV) irá desembarcar do navio por meio de helicópteros, em diferentes pontos ao redor da Antártica, para investigar a biodiversidade de micro-organismos e plantas e associá-los aos tipos de solos onde habitam.
Este estudo visa identificar potenciais espécies novas, como organismos extremófilos adaptados não só a baixíssimas temperaturas (psicrofílicos), mas também à falta de luz sazonal e a ambientes mais secos (ultra-oligotróficos), já que, sobretudo no inverno, não há água disponível, porque ela está na forma de neve e gelo.
Queremos estudar como esses organismos se adaptaram a esses ambientes extremos e se podem ser utilizados em processos biotecnológicos para uso na medicina e agricultura para busca de antibióticos e substâncias para controle de pragas agrícolas, respectivamente, visto que estes organismos extremófilos podem possuir a capacidade e expressar vias metabólicas únicas para produção de substâncias bioativas ainda desconhecidas.
O mesmo grupo irá instalar sensores capazes de detectar a emissão de gases em solos em diferentes pontos da Antártica para avaliar como o aquecimento da região devido ao impacto das mudanças climáticas globais está “despertando” os organismos residentes no solo e liberando ainda mais CO2 na atmosfera da Antártica, fenômeno que pode contribuir para acelerar o aquecimento da região. Dentre os solos avaliados o permafrost (tipo de solo que é permanentemente congelado) será um dos alvos, pois seu derretimento vem liberando muito CO2 e gás metano na atmosfera, o que intensifica ainda mais o aumento da temperatura na superfície do planeta.
Na ciência da neve , faremos medições em busca dos poluentes orgânicos persistentes (POPs). Vamos investigar até se sinais das imensas queimadas na América do Sul este ano chegaram à Antártica.
O ar presente sob o oceano Atlântico até a Antártica também será monitorado a partir de experimentos de aerobiologia (estudos de micro-organismos e plantas presentes no ar). Este experimento irá nos fornecer dados dos seres vivos que chegam e circulam na Antártica e que podem se estabelecer na região como espécies invasoras caso a temperatura da região continue aumentado. Ou aqueles que estão “aprisionados” na Antártica e podem sair da região e chegar até a América Latina e o resto no mundo vias correntes atmosféricas.
No final, vamos ter dados inéditos de toda a periferia da Antártica e, ao juntar tudo isso, podemos tentar interrelacionar as diferentes informações e obter uma imagem geral do meio ambiente antártico e como ele está respondendo a essas rápidas mudanças climáticas.
Há um ano estamos planejando essa expedição, que é financiada pela fundação suíça Albédo Pour la Cryosphère, de estudo e preservação da massa de neve e do gelo planetário, e conta com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (Fapergs).
Mas uma expedição à Antártica é sempre uma incógnita. O que conseguiremos de fato realizar vai depender, é claro, das condições meteorológicas da região (fortes tempestades), do mar congelado (extensão do gelo marinho) e de uma série de fatores adversos e extremos presentes na região. Pode acontecer, por exemplo, do tempo mudar para condições desfavoráveis (ventos acima de 100 km/h) e impedir o trabalho. Temos um planejamento, mas precisamos também de planos alternativos para situações como essa.
Tentamos, por exemplo, sempre ter mais de um de todos os equipamentos que necessitamos, para o caso de defeito. Teremos também médicos no navio, e todos os participantes da expedição precisaram fazer um check-up físico e apresentar um atestado médico para embarcar.
Mas, para além das questões climáticas, técnicas ou mesmo médicas, talvez um dos maiores desafios de uma circum-navegação como essa seja a questão psicológica dos participantes, em razão do confinamento durantes dois meses de trabalhos intensos. Todos os pesquisadores que embarcarão já têm alguma experiência em expedições polares, e são pessoas altamente capacitadas. Mas nem sempre é fácil permanecer em confinamento por tanto tempo, ainda mais em condições tão extremas.
Apesar de todos os riscos e complicações, toda a equipe tem noção da relevância dessa missão internacional que é, antes de tudo, uma ação de diplomacia da ciência, onde grupos de diferentes nações tentam resolver problemas comuns usando a relação entre os pares científicos e não entre os Estados.
Esta é a premissa do Tratado Antártico, do qual o Brasil é um dos 29 países signatários com direito a voz, voto e veto sobre o futuro da Antártica (cerca de 8% do planeta) com todos os seus recursos naturais (minerais e biológicos). Este é um dos poucos fóruns mundiais onde o Brasil tem o mesmo “poder” que grandes potências mundiais como EUA, China, Rússia, Inglaterra, França e outros possuem.
A liderança intelectual do Brasil nesta circum-navegação e a disposição dos pesquisadores em cooperar, em agir de maneira a dividir recursos e resultados, é um exemplo para todas as nações, que precisam começar a agir para salvar e preservar o planeta de uma ameaça que é comum a todos e se apresenta com muita clareza no continente antártico. É sempre bom reforçar que não temos um “plano B” para a Terra, temos que cuidar da nossa casa para as futuras gerações.
Luiz Henrique Rosa, Professor do Departamento de Microbiologia do Instituto de Ciências Biológicas da UFMG, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e Jefferson Cardia Simões, Coordenador da expedição e professor titular de Glaciologia e Geografia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
This article is republished from The Conversation under a Creative Commons license. Read the original article.
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