Um grupo internacional de 59 astrônomos, liderado por brasileiros, encontrou um anel denso, formado por pequenos blocos de gelo e rocha, girando a uma distância de 4.100 quilômetros (km) de um objeto longínquo do Sistema Solar. A presença da estrutura circular em uma órbita tão afastada do centro de Quaoar, nome do gélido objeto, está em total desacordo com um resultado fundamental da mecânica celeste.
Segundo o limite de Roche, uma fórmula usada desde meados do século XIX para calcular a posição esperada de estruturas celestiais em torno de objetos maiores, como anéis e satélites naturais (luas), o anel ao redor de Quaoar deveria estar localizado a uma distância máxima de 1.780 km.
“Nunca se observou um anel denso na órbita de um objeto que estivesse fora do limite de Roche”, explica o astrofísico Bruno Morgado, do Observatório do Valongo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (OV-UFRJ), autor principal da descoberta, descrita em artigo publicado nesta quarta-feira (8/2) na revista Nature.
“A essa distância de mais de 4 mil km de Quaoar, o que deveria ter se formado é uma lua, não um anel.” O achado deve levar a um refinamento das teorias que preveem a formação de anéis e satélites em torno de planetas e de outros objetos celestes.
Descoberto em 2002, Quaoar é um pequeno mundo gelado, com 1.121 km de diâmetro, aproximadamente 11,5 vezes menor do que o da Terra. Seu nome é uma referência ao deus da criação na mitologia dos Tongva, povo originário das Américas que vive nos atuais Estados Unidos.
Quaoar é classificado de forma genérica como um objeto transnetuniano. Está situado no cinturão de Kuiper, que começa logo depois da órbita de Netuno, o oitavo planeta do Sistema Solar (Plutão, que também está dentro do cinturão, foi considerado o nono planeta até 2006, quando foi rebaixado à condição de planeta anão).
O cinturão é constituído de trilhões de pedaços de matéria (rochas e gelo) que sobraram do processo de formação do Sistema Solar, há 4,6 bilhões de anos. Seus fragmentos de maior destaque podem ser classificados como cometas ou planetas anões. Quaoar, que tem metade do diâmetro de Plutão, é um candidato a ser reconhecido oficialmente como um planeta anão.
Não há imagens do anel de Quaoar, mas evidências indiretas de sua presença. Os pesquisadores observaram em vários telescópios espalhados pela Terra reduções no brilho de estrelas sempre que Quaoar e seu anel passavam em frente a elas. “É um fenômeno semelhante a um eclipse”, compara o astrofísico Felipe Braga Ribas, da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), outro autor do estudo. “Registramos a assinatura típica de uma ocultação provocada pela passagem de um objeto com um anel.”
A assinatura de uma ocultação ocasionada por um objeto dotado de um anel se caracteriza pela ocorrência, ao longo de 1 minuto, de três reduções consecutivas do brilho da estrela: uma menor, causada pela passagem de uma parte do anel; uma maior, provocada pelo cruzamento do objeto em si (no caso, Quaoar); e outra menor, produzida pela outra parte do anel.
As duas diminuições menores da luminosidade de estrelas ocasionadas pelo anel de Quaoar apresentaram intensidade ligeiramente diferente. “O anel não é totalmente simétrico”, diz o astrofísico Rafael Sfair, da Faculdade de Engenharia e Ciências da Universidade Estadual Paulista (Unesp), que também assina o estudo. “Um de seus lados é mais largo do que o outro.” As pesquisas de Sfair, que estuda as características e a dinâmica orbital de anéis, são parcialmente financiadas por um projeto da FAPESP.
O valor do limite de Roche é calculado a partir de alguns parâmetros, sobretudo do raio e da densidade do objeto principal e da espessura das estruturas que o orbitam (luas os aneis). Grosso modo, dentro do limite, a influência da força gravitacional do corpo maior impede que os fragmentos de matéria em sua órbita se juntem e formem uma lua. Há apenas uma ou duas exceções conhecidas a essa regra.
Nesse caso, o padrão dominante é que surja um anel em volta do corpo maior. Fora do limite de Roche, os pedaços de matéria são capazes de agregar e gerar luas. O próprio Quaoar tem um satélite natural, Weywot, que obedece a essa fórmula.
Quando um satélite ou um cometa cruza o limite de Roche de um planeta, ele tende a se desintegrar por ação da gravidade do objeto maior. Em julho de 1992, o cometa Shoemaker–Levy 9 se fragmentou em mais de 20 partes ao adentrar o limite de Roche de Júpiter. Dois anos depois, seus pedaços se chocaram contra o planeta.
Saturno, um dos planetas do Sistema Solar, tem o maior e mais espetacular sistema de anéis. Urano, Júpiter e Netuno também apresentam essas estruturas circulares em seu entorno. Neste século, anéis têm sido encontrados em outros tipos de objetos, como planetas extrassolares, luas, estrelas e outros corpos celestes.
Em 2013, Ribas foi o autor principal de um trabalho que descobriu o primeiro anel em torno de um asteroide que se situa entre as órbitas de Saturno e Urano, um objeto de 250 km de diâmetro denominado Chariklo. “Mas aquele anel está dentro do limite de Roche”, comenta o astrofísico da UTFPR.
Por ora, os astrofísicos não têm explicação para a localização tão afastada do anel de Quaoar. Uma possibilidade é haver alguma influência gravitacional sobre o sistema que impeça os pedaços do anel de se juntarem e gerar, como se esperaria, um satélite natural. Isso poderia ser causado por uma irregularidade de Quaoar, por sua lua Weywot, ou ainda por um pequeno satélite desconhecido.
“Se for uma estrutura transitória, o anel deve desaparecer gradualmente à medida que seu material se agrega”, escreve o astrofísico Matthew Hedman, da Universidade de Idaho, nos Estados Unidos, em um artigo de comentário publicado também na quarta-feira (8/2) na Nature. “No entanto, se for de longa duração, as variações de opacidade ao longo de sua extensão podem ser rastreadas com o tempo para restringir exatamente com que rapidez o material do anel está orbitando em torno de Quaoar.”
Os brasileiros Morgado, Ribas e Sfair argumentam que os fragmentos de um anel, como o encontrado ao redor desse corpo gelado do cinturão de Kuiper, teoricamente se aglutinariam e formariam uma lua em cinco ou 10 anos. Não se sabe a idade exata de Quaoar, mas é razoável supor que exista há milhões ou mesmo bilhões de anos. “Seria quase impossível termos tido a sorte de encontrar o anel pouco antes de seus fragmentos se juntarem e darem origem a um satélite”, comenta o astrônomo da UFRJ.
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