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Fóssil interestelar: astrofísico encontra estrela rara e antiga

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A estrela SPLUS J2104-0049 (ponto no centro das imagens) fotografada em ada um dos 12 filtros do telescópio T80S

S-PLUS / Astro Data Lab

Em meio a 21 milhões de objetos celestes observados e catalogados pelo projeto S-PLUS, levantamento que usa um telescópio robótico brasileiro instalado no Chile para mapear metade do céu do hemisfério Sul, uma equipe coordenada pelo astrofísico Vinicius Placco identificou uma estrela muito antiga e rara. Com cerca de 80% da massa do Sol e idade estimada entre 12 e 10 bilhões de anos, a SPLUS J2104-0049, nome do recém-batizado astro, parece pertencer à segunda geração de estrelas que se formaram após o Big Bang. Esta expressão se refere à explosão inicial que teria originado o Universo há 13,8 bilhões de anos. Como estrelas da primeira geração pós-Big Bang ainda não foram observadas, a composição química das estrelas da segunda geração fornece parâmetros importantes para se inferir como devem ter sido suas antecessoras. É um trabalho de arqueologia estelar, no qual a localização e a caracterização de uma peça fornecem pistas do passado remoto.

A existência da SPLUS J2104-0049 sinaliza que a população primordial de estrelas do Universo, que começou a surgir por volta de 200 milhões de anos após o Big Bang, pode ter sido composta por astros de maior massa do que se pensava. “A estrela que descobrimos deve ter se formado a partir de uma nuvem de gás enriquecida pela matéria da explosão de uma única estrela de 30 massas solares da primeira geração”, explica Placco, do NOIRLab, centro de pesquisa mantido pela norte-americana National Science Foundation (NSF) em Tucson, no estado do Arizona. “Até agora, a teoria previa que as estrelas de primeira geração tinham em torno de 20 massas solares.” O astrofísico brasileiro é o principal autor de um artigo sobre a descoberta da estrela publicado em maio no Astrophysical Journal Letters (ApJL).

Distante cerca de 16 mil anos-luz, algo como 3.800 vezes mais longínqua do que Proxima Centauri, a estrela mais vizinha à Terra, a SPLUS J2104-0049 é tecnicamente definida como uma estrela ultrapobre em metais. Esse grupo de estrelas é formado por apenas 35 objetos conhecidos, todos da segunda geração de estrelas pós-Big Bang. Em astrofísica, qualquer elemento químico que não seja o hidrogênio e o hélio é denominado metal, um conceito específico dessa área que difere do adotado pela química da tabela periódica. Além de apresentar uma metalicidade extremamente baixa, como suas três dezenas de irmãs, a SPLUS J2104-0049 tem uma característica que a torna única: é a estrela ultrapobre em metais com a menor quantidade de carbono medida em sua atmosfera. “Ela tem entre 100 e mil vezes menos carbono que as outras estrelas desse grupo”, comenta Placco. De acordo com os modelos dos astrofísicos, uma estrela com essa particularidade só poderia surgir de uma nuvem gasosa enriquecida com material produzido por uma estrela de uma geração anterior com massa equivalente a 30 sóis.

S-PLUS / Astro Data Lab Imagem da estrela SPLUS J2104-0049 (no centro da montagem) a partir da junção dos 12 filtros de cores instalados no telescópio brasileiroS-PLUS / Astro Data Lab

A composição de uma estrela deriva da constituição química das populações de estrelas que a precederam. Em tese, quanto mais antiga for uma estrela, quanto mais próxima da infância do Universo for sua origem, menor seu grau de metalicidade. A primeira geração de estrelas, formadas logo após o Big Bang, seria o caso mais extremo que dita o tom dessa regra. Esses astros primordiais são constituídos apenas de hidrogênio e hélio, os dois elementos químicos mais leves, e desprovidos de metais. Eles apresentam essa assinatura química única porque se formaram a partir do colapso gravitacional de nebulosas constituídas somente de hidrogênio e hélio. As nuvens foram se adensando até formar a primeira geração de estrelas. Todas as populações subsequentes de estrelas seriam compostas majoritariamente por esses dois elementos mais uma quantidade pequena de metais, cujo teor cresce ligeiramente a cada nova geração de estrelas. A vida e a morte de uma estrela fornecem mais metais para as nuvens de gás, aumentando gradativamente a quantidade de elementos nesses berçários estelares. Com o tempo, as estrelas passam a conter mais metais além de hidrogênio e hélio.

A localização da SPLUS J2104-0049 entre as 700 mil estrelas da Via Láctea mapeadas pelo S-PLUS e que tiveram sua metalicidade estimada só foi possível graças a uma peculiaridade do T80S, o telescópio de 86 centímetros de diâmetro, instalado em 2015 na montanha Cerro Tololo, nos Andes chilenos, para captar as imagens que compõem o levantamento do céu austral. O telescópio tem um sistema de 12 filtros fotométricos de cores diferentes, dos quais sete são mais estreitos e permitem estudar as chamadas linhas espectrais dos objetos celestes. As características dessas linhas indicam, por exemplo, a temperatura e a constituição química de estrelas, inclusive das muito antigas, como a SPLUS J2104-0049. “As imagens do T80S são ótimas para descobrir objetos raros para serem estudados”, diz o astrofísico Felipe de Almeida Fernandes, que faz estágio de pós-doutorado no Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP) e cuida da preparação e refinamento dos dados fornecidos para o levantamento S-PLUS. “Uma vez identificado um objeto potencialmente interessante, é possível observá-lo em mais detalhes em um telescópio maior.”

Favio Feifer Visão da parte interna do telescópio T80S, situado na montanha Cerro Tololo, no ChileFavio Feifer

A nova estrela ultrapobre em metais foi descoberta pelo T80S e estudada mais profundamente em dois telescópios maiores, o Gemini Sul, com um espelho de 8 metros (m) de diâmetro, e o Magellan Clay, de 6,5 m, ambos situados também no Chile. Para agilizar o processo de escolha de alvos de observação em meio a milhares ou mesmo milhões de corpos celestes, os astrofísicos contam hoje com o auxílio de algoritmos baseados em inteligência artificial e aprendizado de máquina. “Ensinamos o software a reconhecer a assinatura espectral típica do objeto que estamos buscando e o programa faz a procura por esse tipo de astro em meio às imagens do levantamento S-PLUS”, comenta Placco. Foi assim que, das 700 mil estrelas da Via Láctea observadas no mapeamento até agora, os astrofísicos chegaram inicialmente em 200 candidatas a serem estrelas ultrapobres em metais e, posteriomente, na SPLUS J2104-0049. Segundo os pesquisadores, o índice de acerto do algoritmo em classificar um astro ou formação celeste mapeado pelo levantamento é maior do que 97%. A cada mil objetos analisados automaticamente pelo programa, somente 22 seriam catalogados de maneira incorreta.

“A descoberta dessa estrela pobre em carbono é, por ora, o principal resultado científico do S-PLUS”, comenta a astrofísica Claudia Mendes de Oliveira, do IAG-USP, coordenadora do projeto de mapeamento do céu austral e idealizadora do telescópio T80S. Ao lado do artigo científico com a descrição da nova estrela, a iniciativa publicou cinco papers com a apresentação de métodos e ferramentas científicas que estão sendo usados no S-PLUS. Por € 800 mil (cerca de R$ 4,7 milhões), a FAPESP financiou a compra do T80S, a pedido de um projeto coordenado por Oliveira. Além de receber investimentos da Fundação, o telescópio foi instalado no Chile com o auxílio de seus demais sócios-parceiros: o Observatório Nacional (ON), do Rio de Janeiro, as universidades federais de Sergipe (UFS) e de Santa Catarina (UFSC) e a Universidade de La Serena, no Chile. Várias agências de fomento, como o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), financiaram a participação dessas instituições no telescópio. O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e o Centro de Estudios de Física del Cosmos de Aragón (Cefca), na Espanha, também apoiaram a operação do T80S nos estágios iniciais de desenvolvimento do projeto. Atualmente a manutenção do telescópio é bancada por projetos patrocinados pela FAPESP.

De olho em metade do céu austral
A serviço do projeto S-PLUS, telescópio brasileiro pretende mapear 4.500 regiões da esfera celeste

Três dos 21 milhões de objetos celestes mapeados no levantamento (dir. para esq.): Nebulosa do Lápis, galáxia NGC 3314A e aglomerado globular Messier 2 (NGC 7089)

Existem vários projetos internacionais que têm como objetivo fazer levantamentos e mapear objetos situados em diferentes partes do céu, como o Dark Energy Survey (DES) e o Sloan Digital Sky Survey (SDSS). Essas iniciativas divulgam periodicamente catálogos com imagens e dados sobre os milhões de estrelas, galáxias e outras estruturas que seus telescópios captaram em diferentes comprimentos de onda (luz visível, infravermelho, ondas de rádio, raios gama). “Embora os brasileiros participem regularmente de levantamentos astronômicos, o S-PLUS é o primeiro projeto desse porte e abrangência a ser liderado pelo país”, comenta o astrofísico Roderik Overzier, do Observatório Nacional (ON), um dos coordenadores do projeto. Cerca
de 200 pesquisadores participam do levantamento, dos quais 60% são de instituições brasileiras. O pequeno telescópio T80S, que é uma cópia exata de um congênere espanhol e foi instalado no Chile, trabalha majoritariamente em função desse projeto.

Desde que começou a funcionar, há cerca de 5 anos, o equipamento produziu dois catálogos com imagens de 21 milhões de objetos celestes. Sua meta é varrer uma área equivalente à metade do céu do hemisfério Sul e apontar sua câmera para 4.500 campos de observação do chamado Universo Local, que engloba a Via Láctea e outras galáxias vizinhas, como a Nuvem de Magalhães e os aglomerados de Fornax e Hidra. Cada um dos 12 filtros do T80S produz três imagens de uma região quadrada do céu que poderia abrigar ao menos cinco luas cheias.

“Já cobrimos 40% da área que queremos mapear no levantamento”, comenta Claudia Mendes de Oliveira, do IAG-USP. “Devemos continuar o mapeamento por mais uns três anos e meio.” Além de descobrir objetos raramente observados, como a estrela ultrapobre em metais SPLUS J2104-0049, o levantamento gera belas e novas imagens de estruturas já conhecidas, como as da galeria publicada ao lado. Qualquer pesquisador de instituição brasileira pode participar como membro do S-PLUS. Mais detalhes podem ser obtidos no site do projeto (www.splus.iag.usp.br). Os astrofísicos do levantamento nacional também têm parcerias com projetos semelhantes que estão mapeando o céu do hemisfério Norte, como as colaborações J-PLUS e J-PAS, com as quais devem produzir um conjunto de dados que cobrirá quase metade de toda a esfera celeste.

Projetos
1.
Ciência com o telescópio robótico brasileiro (nº 19/26492-3); Modalidade Projeto Temático; Pesquisadora responsável Claudia Mendes de Oliveira (USP); Investimento US$ 451.745,00 e R$ 2.680.207,02.
2. EMU: Aquisição de um telescópio robótico para a comunidade astronômica brasileira (nº 09/54202-8); Modalidade Programa Equipamentos Multiusuários; Pesquisadora responsável Claudia Mendes de Oliveira (USP); Investimento US$ 1.746.697,84 e R$ 1.325.134,14.

Artigo científico
PLACCO, V. M. et al. SPLUS J210428.01-004934.2: An ultra metal-poor star identified from narrowband photometry. The Astrophysical Journal Letters. 12 mai. 2021.

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